O Brasil não merece a Amazônia

Amaral Netto, o Repórter, era o nome de um programa de TV na década de 1970, portanto, durante a ditadura militar. Eu era bem jovem, mas me lembro muito bem. O aposto “o repórter” se justifica pois Amaral Netto também era um deputado federal governista, mas naquele programa seu papel era de repórter. A bem da verdade, um propagandista travestido de repórter. E dos bons!

Suas matérias consistiam de viagens pelo Brasil mostrando a grandeza do país, suas riquezas e as grandes obras do governo, concluídas ou em andamento. Sua missão era elevar o patriotismo para abafar as vozes que se levantavam contra o regime que ele defendia. Evidentemente não fazia isso por altruísmo, certamente era muito bem patrocinado por aqueles que promovia. A produção de seus programas devia ser, para os padrões daquela época, bastante cara. Lembro-me exclusivamente de imagens aéreas; eram raras as imagens terrestres. Naturalmente imagens aéreas expõem as grandezas e belezas, enquanto omitem as mazelas do povo da superfície.

Entre as maravilhas exaltadas no programa, nossa Amazônia imperava como a maior delas. Não era à toa, e nem porque de fato merecesse o posto; era o tempo de construção da Rodovia Transamazônica, o projeto mais ambicioso, caro e desastroso do governo militar. Deveria interligar o nordeste e o norte do país, com o objetivo de povoar esse último. Isso era o que diziam. Não chegou a ser pavimentada e hoje fica intransitável em períodos de chuva. Tão famosa essa obra naquela época, e hoje, ao fazer uma busca no Google, o que obtemos em troca é a rodovia BR-230, assim, anônima, para que ninguém se lembre daqueles dias.

Era enorme o efeito que aquelas imagens da floresta causavam em mim, e imagino que em muitos outros. Parecia pertencer a outro mundo, muito distante. Naquela época era mesmo quase inalcançável para a maioria de nós. Tão inalcançável que essa viagem não fez parte de meus planos até hoje. Acho que no íntimo sempre achei que ela deveria ficar intocável mesmo.

Junto com a floresta, sua população indígena às vezes era objeto dos programas. A Funai havia sido criada há pouco tempo e era importante vendê-la como a protetora dos povos da floresta. Minha memória desses índios no programa é de figurantes nas cenas em que algum membro do governo era entrevistado. Não tinham voz e eu imaginava que ainda eram selvagens e não entendiam ou falavam português. Tantos anos depois, todos entendemos melhor o que a Funai representa para eles.

Fiz esse preâmbulo para mostrar que a Amazônia desde muito tempo é tema importante nesse país. Infelizmente, no entanto, apesar de sua força e grandeza, é como vítima que ela mais aparece no noticiário. Ora é usada, indefesa, para promover governos, ora é objeto de barganha em disputas internacionais, ora é esquecida e destruída impiedosamente.

Durante essa pandemia da Covid-19, três momentos fizeram com que não nos esquecêssemos daquele grande pedaço do Brasil. O primeiro, no início da pandemia, a capital do maior estado da Amazônia, Manaus, revelou a precariedade do serviço hospitalar público. Muitos mortos foram insuficientes, no entanto, para sensibilizar quem poderia fazer algo por sua população. Talvez governo e outros brasileiros se sentissem como eu, jovem, vendo Amaral Netto, “o” repórter: é tão longe, tão diferente, parece outro mundo.

Num segundo e igualmente dramático momento, vimos a floresta queimar como nunca antes. Talvez nem tivéssemos nos dado conta se pessoas e autoridades de outros países não nos alertassem. Cabeças rolaram. Não dos responsáveis, mas de quem denunciou. E quase ressuscitaram um slogan famoso dos militares, e perfeito para “o” repórter: a Amazônia é nossa! Pobre floresta que ignora divisas, isola e atrai seus próprios algozes. É reivindicada pela humanidade, mas é protegida apenas por um minúsculo exército de povos famintos e desarmados.

No terceiro e ainda mais trágico momento, testemunhamos a morte agonizante de centenas de brasileiros no Amazonas, devido à inércia e à incompetência criminosa dos negacionistas que ignoraram a ciência. Esses genocidas condenaram à morte por asfixia, não pelo vírus, mas pela falta de oxigênio, ar, essa substância básica para o ser humano.

As imagens de Manaus, aquele lugar distante no meio da floresta que sempre nos encantou, só não feriram os corações insensíveis. E há muitos nesse país. E isso me envergonha terrivelmente. E me envergonho por não saber como agir, por não saber como lutar, por me acomodar em esperar que alguém faça algo por nós todos.

Gostaria de ter orgulho do meu país. Hoje tenho orgulho apenas de seu espaço geográfico. Mas tenho vergonha de “estar” brasileira. Tenho empatia pelo povo que sofre, mas desprezo muitos concidadãos. As pessoas que podem decidir não me representam e não estou conseguindo aceitar a ignorância dos privilegiados.

Nunca me senti tão próxima à Amazônia e tão distante do meu país. Acho que o Brasil não merece a Amazônia.

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 16/01/2021
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