Cão sem nome
Chamem-me simplesmente Paulo, o desconhecido, e não Ismael, o aventureiro das “vastas planícies líquidas do mundo”, consagrado em “Moby Dick”, de Herman Melville. Ao contrário de Ismael, não trabalho no mar, mas no asfalto. Trabalho, trabalho, trabalho e mais ou menos vivo em meio ao asfalto. Diferentemente de Ismael, menino do mar, pescador-sonhador, que lida com peixes, eu lido com gente, e números, e números e letras, e letras e um cachorro sem nome.
Meu cachorro não tem nome, como muitos outros caninos mundo afora, mas tem uma mania estranha, como poucos cachorros mundo afora. Uma mania estranha, como todas devem ser. Esse cachorro sem nome, simplesmente cachorro, é de diferente proceder: quando alegre, quer isolar-se; quando tristonho, melancólico, pleiteia expandir-se.
Quase todos de nossa vizinhança asfáltica sabem de tal comportamento, e ignoram chamar a polícia... Um dia desses pensei a respeito; porém, após breve contradição comigo mesmo, desisti de levá-lo a justificar-se perante à lei. Talvez, após interrogatório policial, ele revelasse onde adquiriu essa peculiaridade comportamental. Se é que “adquiriu”; quer dizer, se não lhe é de nascença, herdada de seus antepassados caninos.
Há momentos em que suspeito que ele sabe dessa minha intenção pretérita, mas a releva. Fico satisfeito ao constatar que ele ainda não me mordeu uma única vez, e penso até que me tem como amigo. A mim e ao carteiro da rua, que, inteirado da loucura incomum desse meu cachorro sem nome, me sugeriu aumentar a altura do muro, para evitar encontros não programados .
O senhor carteiro sabe que, dentro de casa, esse meu cão sem nome é inofensivo, pois costuma ocupá-la quando está de bom dia e satisfeito com as inclinações astrológicas. Em casa é um cão civilizado, ordeiro, calmo, festeiro e desdentado. No entanto, em meio a paralelepípedos, carros acelerados, pressa asfáltica, revela-se incivilizado, selvagem, furioso e mordedor. Daí que o precavido carteiro tirou os nove fora e me disse muito solenemente ter chegado à conclusão de que meu cachorro sem nome é doido. E o carteiro não está sozinho nessa. Já me disseram alguns vizinhos que às vezes esse meu cachorro sem nome nem parece cachorro. Parece gente, e, como ocorre geralmente, má.
A maioria de nossos circundantes bípedes afirma que esse meu cão sem nome é doente e mau. Cachorro sem atrativos que sofre do fígado, que se recusa a corrigir-se, supersticioso ao extremo, que, embora respeite a medicina e os médicos, reluta em recorrer a tratamentos medicamentosos. É quase unanimidade entre os que o cercam, tê-lo como uma reprodução canina de o “Homem do Subsolo”, de Dostoiévski. Mas, em sua verdade, esse meu cachorro sem nome sabe que, como diz Tolstói, em “Ana Kariênina”, se todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
E ele e eu formamos uma família atípica, apesar de citadina. Essa atipicidade me leva a duas conclusões. A primeira, e mais simples, é à de que o carteiro tem razão. Devo aumentar a altura do muro, para o bem da coletividade e da segurança municipal; à segunda, e mais complexa, diz respeito à orfandade desse meu cachorro sem nome. Isto é, está na hora de nomeá-lo, o que me leva a uma terceira e complicada questão existencial canina: que nome dá a um cão sem nome?