Sinfonia de pardais


     1. Noite dessas, atormentado por uma infame insônia, procurei, no YouTube, alguma coisa que me fizesse dormir. 
     De repente, encontrei o saudoso compositor Herivelto Martins (1912-1992) contando sua história.      Embora conhecesse um pouco da tumultuada  e trepidante vida terrena do compositor Herivelto, sempre contada pelos outros, interessou-me sabê-la, contada pelo próprio, em longo e musicado depoimento, colhido e gravado para a eternidade.
     
2. Ao invés de cair no sono, como esperava, o depoimento do Herivelto interessou-me tanto que minha insônia não só persistiu, como se agravou.
     Como dormir, deixando o Herivelto Martins, com sua voz macia, contando como fez algumas de suas mais belas canções. Estas duas, por exemplo, que gosto imensamente, desde os tempos do respeitado Vinil: "Cabelos brancos" e "Ave Maria no morro".
     
3. "Cabelos brancos". Começo como sempre faço quando escrevo sobre música popular, ou seja, transcrevendo sua letra, para prender a atenção do leitor.
     Vamos lá: "Não falem desta mulher perto de mim/ Não falem pra não lembrar a minha dor/ Já fui moço, já gozei a mocidade/ Se me lembro dela me dá saudade/ Por ela vivo aos troncos e barrancos /Respeitem ao menos os meus cabelos brancos/ Ninguem viveu a vida que eu vivi/ Ninguém sofreu na vida o que eu sofri/ As lágrimas sentidas/ Os meus sorrisos francos/ Refletem-se hoje em dia / Nos meus cabelos brancos/ E agora em homenagem ao meu fim/ Não falem desta mulher perto de mim".
     
4. Por quem pedia Herivelto? Alguém tem dúvida? Não: ele pedia que não falassem mal de seu grande amor, Dalva de Oliveira.
     Ele contou que, entrando numa quitanda paulistana, duas senhoras conversavam, sentando o cassete em Dalva. Coincidência, perguntou ele.
     Herivelto não gostou, mesmo estando separado da interprete de "Bandeira branca", após um dos memoráveis quiproquos, separando os dois.
     No primeiro momento, pensou em censurar as duas senhoras. Refletiu e desistiu. Recolheu-se, e com seu parceiro, Marino Pinto, compôs "Cabelos brancos".
     O gozado de tudo, confessou o compositor de "Atiraste Uma Pedra", é que, na época da canção, ele não tinha um só cabelo branco tingindo sua soberba cabeleira juvenil. 
     
5. No Rio de Janeiro, no apartamento que um dos meus filhos morou, passei alguns dias. Era na Avenida Delfim Moreira, no Leblon, com benéfica e privilegiada vista para o mar, para o morro "Dois irmaõs" e para a favela do Vidigal. 
     Detalhes: nos dias de sol ridente, de suas janelas, debruçadas sobre o calçadão, eu podia admirar, num momento de plena felicidade, as jovens e coroas cariocas passando para a praia. Todas em trajes sumaríssimos. 
     Divertia-me, não nego, vendo-as, com seus bustos, grandes, médios e pequenos, quase escondidos,  e seus quadris, de glúteos avantajados,  expostos e sorridentes.
     
6. Também de uma de suas janelas, vi, repetidas vezes, o anoitecer no morro do Vidigal, o morro que o Papa João Paulo II,  hoje canonizado pelo Papa Francisco, subiu e abençoou.  Um espetáculo. Quando a noite cai, as luzes do morro se acendem, escorregando como lágrimas na face do Vidigal. 
     
7. E aqui volto à outra canção, "Ave Maria no Morro". Na entrevista, Herivelto disse por que compôs essa bela "página musical", como diziam os locutores d'outrora.  
     Também começo transcrevendo a letra  de "Ave Maria no morro". Muito bem. "Barracão de zinco/ Sem telhado, sem pintura/ Lá no morro/ Barracão é bangalô/ Lá não existe/ Felicidade de arranha-céu/ Pois quem mora lá no morro/ Já vive pertinho do céu/ Tem alvorada, tem passarada/ Alvorecer/ Sinfonia de pardais/ Anunciando o anoitecer/ E o morro inteiro no fim do dia/ Reza uma prece ave Maria/ E o morro inteiro no fim do dia/ Reza uma prece ave Maria/ E quando o morro escurece/ eleva a Deus uma prece/ Ave Maria". 
     
8. Contou como se inspirou para compor música tão linda. Inspirou-se, disse, na religiosidade do povo simples dos morros, das favelas, sempre presentes aos cultos das suas igrejas, das suas crenças.
     Nada além desse comportamento piedoso, confirmado por todos que, com bons olhos e boa vontade, sobem os morros cariocas.
     9. Permitam-me fazer, agora, uma confissão, pela qual poderei ser mandado pras profundesas dos infernos. Não estou nem aí.
     Queria só dizer, que para este escriba menor, muito mais bonita do que as "Ave Marias" de Schubert (1797-1828) e de Gounod (1818-1893) é a "Ave Maria no morro" do Herivelto Martins. Agora podem me apedrejar...   
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 11/01/2021
Reeditado em 12/01/2021
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