ENQUANTO O GALO URRAVA...

A cena amanhecia como há décadas amanhece: muda de perplexidade.

Na tela midiática só mais uma das rotineiras surrealidades sociais, sempre tão dolorosas, daquelas ocorrências que nenhum inconsciente transformaria em fragmentos de susto e dor, recortados com tanta precisão em meio à configuração dum pesadelo perene.

Todavia, a vida dali nunca fora midiática, tampouco curvada ao escrutínio das horas que rendem lucros e palanques de promessas nunca cumpridas.

Chovera torrencialmente como sempre chove sobre a terra desprecavida de cuidados; e a água, a fazer uso do seu direito assegurado e desesperado por correr, procurava escoar rumo ao seu natural destino roubado, sempre incerto.

O mesmo destino para decorrer, batalhado e protagonizado pelas gentes.

O morro sempre tremera de medo sob as turbulências dos céus, bem como sob os humores ciclotímicos e desarranjados das "Cumulus Nimbus", enormes nuvens cinzentas e aquíferas de danos que sempre deságuam contaminadas de descaso pelos solos sedentos de tudo.

Águas envenenadas e venenosas por acúmulos de dores insolúveis.

A imprensa, sempre atenta às mesmas notícias dos abandonos, mostrava um homem que perdera o que parecia ser tudo que tinha.

"eu durmo no chão, mas perdi o meu colchão" disse ele à reportagem, numa rima pungente, pobre de existência, lamentando seus trinta anos de trabalho que lhe rendera um sonho de chão duro como uma vida inteira de pedra empedernida pela esperança ida.

Tentei enxergar melhor através da tela o tudo que nunca se enxerga, mas suas lágrimas eram invisíveis porque se confundiam com a enxurrada turva que arrastava pelo tempo um quase meio fio de vida, em meio a todas as impossibilidades de dignidade de ser.

Senti que o homem desejara coisa pouca do muito que já fora escrito como promessa das leis dos Homens, escrituras que mofam apenas para polemizar a reivindicação do que nunca chega à saciedade das sedes invisíveis.

Em meio ao tudo, a voz trepidante dum galo que não era o mesmo, me gritou à atenção.

A ave não cantava a sua singela natureza cantante e imponente, parecia urrar, berrava num cansado timbre rouco que ecoava ao longe a sonoplastia dum certo terror em lamentação pelos seres dali.

Aquilo me tocou profundamente, embora ninguém das câmeras de luzes tenha focalizado seu lamento de dor.

Era só mais uma dor inaudível ao meio...

Luzes...como nos falta o contraponto das mãos da fraternidade a clarear toda a escuridão das tempestades programáticas que desabam sobre nós.

O galo parecia chorar a rinha dos Homens que nunca amanhecem num horizonte tangível, porque a eles jamais desponta o grande farol da aurora, o daquele sempre poetizado rei sol que (só em verso!) lhes é garantido nascer para todos.

Como se numa espera infindável do premente verso de Nelson Cavaquinho na sua belíssima Juízo Final.

Será mesmo que o sol há de nos brilhar algum dia?

Enquanto o galo urrava nascia igualmente minha crônica doída de dor, como a das tantas gentes que doem cronicamente pelos textos nunca nascidos em vida.

É à dor daquele galo de grito urrado que dedico os meus sinceros e pungentes sentimentos.