Carta à ex
"10 de janeiro de 2021.1 apud Brasileia - D.C
Ingrato amor:
Neste exato momento faz um mês, três dias e uma banda de hora que me deste aquele presente. Sim, ele persevera em mim, apesar de querer livrar-me dele. Aquele "Adeus, e até nunca" ainda guardo comigo hoje assim como ontem, e anteontem, tal qual todos os antecessores até o dia do fim de nosso, de tua parte, efêmero amor.
Aqui estou, outra vez, pois. Não para te felicitar o dia em que deste ao mundo um dos motivos mais nobres de alegria, isto é, tua presença. Escrevo-te para parabenizar pela sensata decisão que tomaste ao ignorar minhas intenções.
Aquele "Adeus, e até nunca" já não me parece a antessala do fim do mundo, senão a face redentora que a transforma em um "Adeus, e sempre estarei aqui". Escrevo-te para te dizer que fizeste a melhor escolha. Jamais poderia dar-te o que pretendia. Querias um príncipe encantado, e eu o desconheço e ele a mim. Quanto à dedicação exclusiva, sempre acreditei perda de tempo. Filhos? Para quê? Desejavas conjugar duas entidades díspares, felicidade e casamento, eu pretendia preencher lista de palavras cruzadas... Enfim, constato-me agora inábil para realizar-te, quer como esposa, quer como namorada, quer como amiga até.
Tu lembras como nos conhecemos? Suponho que não, afinal temos péssima memória amorosa, nisso combinamos. Agradeço àquela calçada escorregadia que me permitiu presenciar o mais brioso escorregão feminino a que assisti. Não caíste, é verdade, desse um desvio no traçado vertical do trajeto, mas eu e internamente meus olhos, espectadores da cena, internamente lacrimejamos. Tombei de amores por aquela moça esvoaçante, à primeira vista risonha e visivelmente inábil para calçadas escorregadiças, à primeira e, depois, à segunda e sucessoras vistas.
Agora, em doses homeopáticas, estou superando o fim de nosso pretenso amor, apesar de admitir que o perfume que me deste no primeiro mês de nossa estada ainda levo comigo, incólume, ileso, todo talhado de nossas mais saborosas lembranças. Asseguro que, como está em curso, nosso amor pode até cambiar da fase carnal para a vegana, que, conforme o senso comum, é uma espécie de "paixão saudável", no entanto, saudável mesmo penso que seja brócolis, e ainda que ordem judicial me peça que o restitua à legitima dona, recusar-me-ei a devolvê-lo. Recusar-me-ei a ir de encontro a um dos rituais legitimadores de nossa precoce e efêmera escalada amorosa.
Sei que detestava quando eu falava ''difícil". Não faz mal não. Também sei que te desgostava quando, igualmente ou pior, cumpria as leis da concisão e clareza vocabulares, o que me faz concluir, meio no automático, que os meios de expressão pouca ou nenhuma relevância exerciam sobre nossa estada amorosa. Mas o que nos manteve unidos durante dois meses, quinze dias, duas horas, trinta minutos e dez segundos? Exatamente não sei responder.
Fontes extraoficiais me disseram que era, no primeiro mês, a busca por um relacionamento. Tu na casa dos trinta, todos vividos ao lado dos pais, solteira, desempregada, em meio a uma cidade cujo centro gira em torno da igreja, de dez bares, de cinco supermercados e multidão de ociosos. Considero a pressão que viveste para filiar-se à corrente das moças prendadas, em face disso, considero igualmente abonável, depois dos dois meses, quinze dias, duas horas, trinta minutos e dez segundos de nosso estar, a sua decisão de lhe pôr fim.
Daí que vou às considerações finais, grato amor.
Agradeço-te por, durante esses dois meses, quinze dias, duas horas, trinta minutos e dez segundos ter estado ao seu lado, moça cristã. Não direi que foram os melhores dias de mi vida, os mais desabonadores, tampouco. Juro-te. Quero que leve contigo minhas melhores performaces, tal qual ficaram-me as tuas. Apesar de algumas ressalvas, pois a maioria diz respeito a aspectos exteriores a seu querer, curto teu estilo, moça cristã. À minha ex-futura sogra, mando abraço, mas quem me dera enviar-lhe beijos, porém o senso comum condena tal exuberância afetiva quando o destinatário é sogra. De resto, é lamentar pelos "Eu te amo!" silenciados; por não lhe ter presenteado com um casamento feliz; por tê-la elogiado tão pouco; por segredos sonegados; pelo excesso de DRs; por me esquecer de te dizer que, no fundo, lá próximo ao abismo, descobri que também sou fruto de convenções sociais, uma das quais me recomenda te dizer, afavelmente:
Dios te bendiga, e até nunca."