O amor pela aguardente e a revolta da cachaça
O amor pela aguardente e a revolta da cachaça
Assim que o chamaram de cachaceiro, Jeca mostrou a erudição que parecia esquecida desde a época em que exercia a profissão de professor de história. Pois é, o alcoolismo dominou o personagem, já vai lá uma década e meia pelo menos. Antes, se mostrou sujeito sabido, autor de livro bacana, todos o admiravam. Porém, não se sabe ao certo quando foi que ele se entregou ao vício da aguardente e ficou de vez desempregado, coitado.
Naquele dia, em um dos bares da cidade, Jeca respondeu à altura àquele impertinente engraçadinho debochado que o chamou de pudim de aguardente.
— Se sou cachaceiro, está ótimo, sou um resistente. Você sabia, garoto, que a revolta da cachaça se revelou um marco de São Gonçalo na história colonial do Brasil? Pois é, e eu é que sou coitado, na sua opinião. Pobre de você, desinformado. Mas lhe conto, não nasci para guardar rancor. Senta aí, quer um refrigerante?
Confesso que muito me admira a forma como o nosso personagem ex-professor encarou a ofensa. Principalmente, porque partiu da atitude de um rapaz tão novo e debochado. No entanto, necessário admitir que o senhor Jeca deu uma aula de história fluminense ali no balcão do bar.
— Rapaz, importante ressaltar que os cachaceiros passaram a ser chamados de alambiqueiros, por causa do sentido pejorativo que o primeiro apelido oferecia. Os patrões proprietários dos alambiques eram aqueles que tomaram a cidade do Rio de Janeiro, porque tiveram os impostos de exportação absurdamente aumentados no comércio dos seus produtos para a Europa. Isso ocorreu no início de 1660, quando Salvador Correia de Sá e Benevides assumiu o cargo de capitão-general da Repartição Sul do Brasil.
Bem, em meio à palestra improvisada, um ou outro vizinho apareceu no bar. Troca rápida de palavras, um torresmo esponjoso em oferecimento educado, e a fala do Jeca continuou:
— Aí, garoto, os tais cachaceiros guerreiros de São Gonçalo (os donos de alambiques) relutaram, ou melhor, se revoltaram contra a taxação absurda e desleal. Certo fazendeiro de nome Jerônimo Barbalho, um dos mais importantes produtores de cana-de-açúcar da região, logo assumiu para si a incumbência de conduzir o povo alambiqueiro enfurecido. Certa madrugada de final de ano, uma enorme "patota" de revoltosos chegou ao Rio muitíssimo aporrinhada. Verdade, bem em frente da Câmara o líder Barbalho anunciou o ultimato, exigindo que as taxas de exportação fossem abolidas e o dinheiro pago fosse prontamente devolvido aos produtores de cachaça.
Mais uma pausa. No meio da conversa, Jeca foi ao mictório, mas voltou rápido. Pediu uma água tônica e tomou.
— Retomemos o assunto. Depois de muito "disse que me disse" e estratégias políticas, Jerônimo Barbalho se aproveitou que o governador Salvador Correia de Sá viajou a São Paulo, quando ficou o interino, e se tornou o governador da ocasião. Sendo assim, claro que por causa de tantas inimizades não durou muito no cargo. Resultado? Morreu. Sim, Barbalho fora julgado e decapitado por ordem do próprio Salvador de Sá que retornou ao governo. Os demais cachaceiros revoltosos foram perdoados. E todos viveram felizes para sempre, vendendo as suas respectivas cachacinhas. Tá bom pra você de explicação?
— Está sim, senhor, obrigado, muito agradecido.
E assim terminou esse caso de bullying às avessas. De cachaceiro a professor novamente, o velho morador do Pita se sentiu útil. Mas o fígado teimou em reclamar, e o Jeca vomitou.
Fonte: https://tokdehistoria.com.br/2013/01/15/revolta-da-cachaca-primeiro-exercicio-de-democracia-no-brasil/