QUANDO MEU PAI SE AUSENTOU
QUANDO MEU PAI SE AUSENTOU NAQUELE JANEIRO DE 1966.
Nelson Marzullo Tangerini
Janeiro é sempre um mês de lembranças tristes e pesadas para mim, embora meu saudoso pai já tivesse cantado a pedra alguns anos antes de sua partida, neste pelo soneto que ora publico:
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“VERITAS
Se a vida, a vida, a verdadeira vida
se resumisse neste mundo apenas,
eu já teria sido um suicida:
não curtiria as aflições terrenas.
Mas a existência é eterna, indefinida,
e minh´alma, em fluídicas antenas,
sente-a na progressão de uma subida,
em fases que vão sendo mais serenas...
E a voz do meu espírito não cala,
continuamente aos meus sentidos fala
que os Prós da eternidade são anciães.
Fulgem na Luz, que é Deus que se descerra;
filtram na Dor, que purifica a Terra;
vibram no Amor, que santifica as Mães!”
Veritas foi escrito provavelmente no início da década de 1960, quando o autor sentia os efeitos da doença. Foi publicado mais tarde nos Jornais ENTRE AMIGOS Especial - Para a eternidade – Nestor Tangerini.
Editor: Vilnei Koohls,p. 3 Ano I – No. 3, Porto Alegre, RS, MAIO/JUNHO, de 1999 e JORNAL DE PIRACICABA.
Perdi meu pai aos 10 anos, no dia 30 de janeiro de 1966, após o escritor travar uma longa luta contra o câncer de pulmão.
Quando Nestor casou-se com Dinah, minha mãe, ele tinha 40 anos e ela 19. Familiares acharam uma loucura uma jovem casar-se com um homem bem mais velho, com idade para ser seu pai.
Logo viriam dois filhos. E, mais tarde, 14 anos depois, viriam o escritor que vos escreve.
Ainda guardo na memória o tempo em que estivemos juntos, muito embora esse tempo tenha sido muito curto.
Naquele janeiro de 1966, uma tragédia acontecia no Rio. Várias pessoas perderam suas casas; muitas morreram.
Isto se somou à minha tragédia: meu pai, que me chamava de “filhote”, morria lentamente, em meio um grande temporal que parecia não ter mais fim.
Logo após a sua morte, fui passar uns dias com meus tios, no Rio Comprido, onde deveria viver numa redoma; afinal, estava fragilizado. Mas não foi isso o que aconteceu: pessoas pobres, desesperadas, desabrigadas, batiam à porta de minha tio, Antonietta, pedindo comida, água ou roupas. E foi naquele momento que percebia a existência dos humildes e um sofrimento diferente do meu.
O trauma foi tanto que, durante muito tempo, não conseguia aprender nada. Nada me interessava. E o resultado não poderia ser outro: repeti 3 vezes o 1º. Ano do antigo ginásio. Sem falar que o ensino era chato, monótono, enfadonho, uma doutrinação pró-golpe de 1964.
Toda a obra do meu pai foi guardada em caixas pela minha mãe. E só mais tarde, na faculdade de jornalismo, comecei a me dedicar aos seus trabalhos, com o apoio de minha mãe e de amigos seus, como Djalma Bittencourt, Aldo Cabral, Mário Lago, Ronaldo Lupo, Maurício Marzullo, meu tio, entre tantos outros.
Há 55 anos convivo com meu pai ausente. Sinto-o vivo, quando trabalho de parceria com ele em seus livros. E este trabalho tem me uma grande aproximação com meu pai ausente.
Recorro então ao velho Drummond, aquele sábio poeta de Itabira que, apesar de pedras no caminho, tinha resposta para tudo.
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim”
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Nossos pais são diamantes de raro valor – e são eternos