O dia em que a palavra morreu

Houve um tempo nesse planeta em que tudo corria aparentemente bem. Não sem perigos, tragédias e grandes riscos, mas sempre com sinais de boa evolução, de melhorias, de progresso. A vida de animais, plantas e humanos seguia o caminho de milhões de anos estimados por cientistas. Ainda não se conhecia outro planeta que permitisse vidas como essas. Porém, poucos tinham consciência de tal privilégio, e outras questões ocupavam a agenda de quem organizava essas vidas.

O poder sempre foi o combustível desse planeta. A natureza exercia o seu, sempre que tinha que recolocar as coisas nos seus devidos lugares; os aninais, para sua sobrevivência; os humanos, ah! os humanos...Os homens cobiçavam o poder apenas pelo fascínio que tinham por ele. Dividiram-se em tribos, nações e países, relegando poderes para instituições a fim de disfarçar a ambição do exercício pessoal de poder.

E o poder sempre esteve ligado aos recursos, ao capital, ao dinheiro. Detinha o poder quem tinha mais dinheiro, e tinha mais dinheiro quem detinha o poder. Em planeta grande, porém de recursos finitos, nem todos poderiam ter poder. Os que não tinham, na maior parte do tempo, não causavam problemas. Os que tinham digladiavam-se entre si, mas o que fizessem sempre afetava todos os demais.

Em paralelo a essa dualidade, uma outra se formou. Tantos anos de humanidade, muito conhecimento foi gerado e transmitido ao longo do tempo. Do que é constituída e como se comporta a natureza, como produzir alimentos, como manter a vida animal e humana, como construir casas e cidades, como evitar catástrofes naturais ou problemas pessoais, como criar máquinas que se comunicam e que fazem o que o humano faz, entre outros, tudo isso foi chamado de ciência. Nem toda a população era alcançada formalmente por todo o conhecimento, mas a comunicação em massa permitiu que quase todos fossem informados ao menos sobre aquilo que mais os afetava. Ainda assim, criou-se o grupo dos chamados “esclarecidos”, daqueles que confiavam na ciência, e o grupo dos “simples”, daqueles que preferiam acreditar naquilo que fosse mais conveniente, seja no que era proclamado por alguém por quem tinham algum fascínio, seja nos dogmas de uma religião.

Enquanto que os simples, por sua própria natureza, eram muito unidos – até porque não havia razão para se dividirem –, os esclarecidos dificilmente concordavam entre si. Justificavam-se dizendo que só os idiotas são unânimes. Durante muito tempo essas discordâncias foram muito importantes para o progresso da ciência, mas uma certa conjuntura de fatores uniu os simples de tal forma que os esclarecidos foram, aos poucos, sendo silenciados. Ao contrário da obediência e do barulho provocado pelos simples, eles eram caracterizados por sua discrição, polidez e uma forte noção de civilidade e cidadania. Armas nobres, porém inúteis na guerra contra inimigos tão simples. De todas as violações cometidas contra eles, a que feriu de morte – a eles e a todos – foi a destruição de toda publicação escrita: livros (didáticos, científicos, literários), jornais, revistas, artigos científicos, manuais técnicos, tudo. Havia uma exceção: as publicações de cunho religioso.

Tudo isso foi acontecendo aos poucos, de forma bastante sutil e planejada. A cada censura, os aplausos dos simples, que a essa altura, eram a maioria. A suspensão dos jornais, em primeiro lugar, inviabilizou qualquer voz contrária. Sempre havia uma justificativa que agradava os apoiadores. No início, apenas a imprensa esclarecida era eliminada. Mas os simples se contentavam com as imagens dos canais de TV comandados por suas igrejas, assim nenhum outro tipo de imprensa era útil, e todo jornalismo escrito desapareceu. Livros didáticos foram abolidos por conterem teses que iam contra os dogmas religiosos; foram substituídos por professores alinhados com o pensamento simplista. Cientistas viram seus veículos de divulgação sumir gradativamente. E tão grave quanto tudo isso foi o expurgo das publicações existentes até então. As primeiras fogueiras de livros foram públicas e, para os esclarecidos, chocantes. Ao se tornarem corriqueiras, logo ocorriam em qualquer lugar, nos quintais das casas, nas esquinas, no meio das ruas. E assim, as palavras e tudo o que carregavam ardiam como as folhas secas que se queima para limpar terrenos.

Tudo isso não se deu repentinamente, mas ao longo de algumas décadas, de modo que eram poucos os que previram o perigo letal dessas ações. Além disso, as mudanças se deram primeiro nos países mais desenvolvidos, de modo que os menos, que sempre se inspiravam naqueles, assimilaram os golpes com mais facilidade.

As consequências não tardaram a se revelar. As novas gerações, já não familiarizadas com livros, enchiam templos e igrejas, cujos cultos eram tudo o que se tinha de educação, cultura e lazer. Os esclarecidos foram desaparecendo sem substituições. Os simples se multiplicavam e disputavam o poder entre si. A lei era regida por textos religiosos, sendo que apenas um foi eleito por país. Após algumas guerras civis, cada país estabeleceu a religião majoritária para reger suas leis. Mas foi a morte da ciência que determinou o futuro desse planeta.

Quase de imediato a falta dos textos técnicos decretou o fim definitivo de todas as máquinas que deixavam de funcionar. Dito assim, parece pouco, mas o fato é que fábricas foram fechadas e os empregos desapareceram; veículos deixaram de se mover e o transporte de pessoas e de alimentos cessou. Energia deixou de ser gerada, aviões não puderam mais voar, navios ficaram estacionados em portos. Sem TV, sem templos, sem comida, o caos se estabeleceu. Cada país tinha seus próprios problemas (que eram os mesmos, porém em estágios diferentes) e era incapaz de ajudar vizinhos ou aliados. Então os simples – só havia eles – rezavam. E acreditavam que aquilo tinha sido inevitável e que algo iria acontecer para salvá-los. Em breve os livros sagrados também desapareceram e os homens se esqueceram de como se rezava.

Aquela humanidade padeceu de tudo, especialmente de fome. Os seres que sobreviveram mais tempo, vagando e resgatando recursos, viviam sós e, desprovidos da palavra escrita, tampouco pronunciavam a falada. Novas gerações (sim, eles eventualmente geravam novos seres humanos) não tinham mais o que aprender, ensinar ou simplesmente narrar, de modo que aqueles que cresciam já o faziam em silêncio absoluto. Foi assim que a palavra foi sentenciada à morte, agonizou e morreu. E com ela, aquela vida desse planeta.

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 06/01/2021
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