BELCHIOR TINHA RAZÃO
Belchior, o compositor cearense de Sobral, estava certíssimo, quando disse que o passado é uma roupa que não nos serve mais. Não serve mesmo. Nada a ver com tamanhos de corpo e roupa, manequim alterado, números diferentes. O passado tem um sinônimo horrível, aquele que criancinha não consegue entender: pretérito. Ah, palavra feia... palavrão, mesmo! Ela, a palavra, não nos cabe nem nos pertence, muito menos a roupa de outros tempos.
O passado faz galhofa, ri de nós, incautos seres querendo as mesmas coisas que tivemos em outros tempos. Somos maus exploradores do nosso tempo, que não soubemos eliminar nossos rastros. Hoje tentamos voltar pelos mesmos caminhos, mas nem as pegadas deixadas servem mais em nossos pés. Estes cresceram assustadoramente. De cara, percebemos que as marcas seguem em caminhos opostos. Elas vêm e nós queremos ir ao tempo que passou.Nada se encaixa.
Cismei um dia que deveria voltar a morar na mesma rua em que vivi linda história. Fiquei tão absorta em tal pensamento insistente, que acabei voltando. Ledo engano! As pessoas não eram as mesmas e, na varanda em que sonhei , eram outros a sonhar. Sonhariam os outros? A rua tornou-se larga, escura e um tanto sem oxigênio. Fiquei sufocada naquele ambiente onde os passos eram de seres diferentes. Não, os mesmos passos não seriam, jamais. As vozes, os sorrisos, os encantos, tudo acabara.
Ah, que palavra horrível esta... pretérito. Não gosto dela. Eu acreditei tanto em tudo que me mostraram lá atrás, que julguei ser possível sentar na varanda e rever as mesmas pessoas. Fui enganada. Ninguém me reconhece naquela velha cadeira. Ninguém sequer me vê.
Levantei-me do lugar e apaguei a luz da varanda. Nenhuma pedrinha da rua chamou-me para dizer boa noite. Belchior tinha razão.
Dalva Molina Mansano
06.01.2020
22:53