Roubei meu tempo
Ontem, plena sexta-feira ensolarada, fui autora e vítima de um crime. Roubei meu próprio tempo. Às vezes a vida pesa num tanto, e quem está em volta age como cúmplice. Como pode? Penso desacreditada. Como pode as pessoas sentirem prazer em fazer mal aos outros. Quem sabe, à minha própria maneira, também já fui cúmplice das circunstâncias adversas de outrem. Mas o que queria contar, era isto: roubei o meu tempo. Foi premeditado. No dia anterior havia planejado tudo. Fiz um checklist dos pormenores. Coloquei crédito para não faltar internet. Peguei uma toalha de rosto para poder sentar, lá no meu destino. Acordei cedo. Me vesti normalmente, não havia necessidade de um traje especial. Pronta para sair de casa, enganando até a mim mesma com aparente normalidade. Fui até o mercado. Comprei os suprimentos necessários, não eram muitos. Cumprido a pequena missão, atravessei a rua em direção ao ponto de ônibus. Em poucos minutos, cheguei no trampolim do meu destino: a antiga rodoviária conhecida por mim só de vista. Nunca havia partido a partir dela. Dessa vez, foi diferente. Comprei a passagem e fui esperar junto ao portão de embarque. No livro até então guardado na mochila, li a crônica perfeita. Pura coincidência. Era sobre viagem e sobre a fuga impossível. Segundo Eliane - e não há quem possa discordar - é impossível fugir de si mesmo e cada viagem é uma descoberta de um novo lugar, do lado de dentro. Na leitura propícia pelo tempo de espera, poderia ter lido sobre qualquer coisa, já que o livro em questão era uma coleção de textos da jornalista Eliane Brum. Mas naquele momento foi sobre viagem e autoconhecimento. Não tenho muitas convicções colecionadas, mas acredito nessas pequenas coincidências. Acredito tanto que vejo até onde não tem. Não foi o caso. Um pouco mais de duas horas depois, embarquei. Feliz e me sentindo corajosa. O percurso foi mais demorado do que esperava. Um pouco antes do embarque, tinha riscado mais um item da minha lista: avisar que não ia trabalhar. Motivo: problemas pessoais. Sei que para ser sincera deveria ter falado em problemas internos. Mas não se pode faltar um dia de trabalho por isso. Ou até pode, com atestado médico, se o problema for no rim, pulmão, coração. O meu era mais fundo e mais difícil de diagnosticar. Difícil também de explicar. Ainda não encontrei a minha maneira de viver. Há manuais por toda parte, é verdade. Pouco úteis, dada a singularidade de cada um. Preciso encontrar a minha maneira de viver possível. Como conciliar as contradições? As obrigações e os desejos. Os sonhos e a realidade. Ainda busco respostas. Dado o recado, pude partir em paz na minha transgressão. Depois do desembarque, andei pela cidade quase rindo sozinha, como quem diz: eu fiz mesmo isso! No começo, vaguei pelas ruas sem saber como chegar ao meu destino, entretanto novamente coincidências colaborativas se impuseram. E finalmente cheguei no lugar planejado. A vista linda e serena. O sol quente. As ondas... ondas suaves quebravam, e vinham ao meu encontro. Um som tão gostoso. Era como: shhhh... Silêncio e respira. Foi um dia de contemplação, de leitura e de pausa. Os problemas seguem, as perguntas permanecem. O meu tempo ainda não é totalmente meu. Apenas sei que há salvação. Não uma completa e absoluta. A vida é movimento e a minha salvação é variada. Encontro, eventualmente, em livros, músicas, pessoas, lugares, em mim. Nessa sexta-feira ensolarada, roubei meu tempo - aquele que vendo legalmente de segunda à sexta. Me salvei pelo menos por um dia.
Escrito: 05 de dezembro de 2020
Atualizado: 12 de dezembro