Abílio e Sinhá, meus Avós: Um Retrato na Parede
A mim foi confiada esta missão para representar MARIA RUTY MAYKOT, prima de minha saudosa mãe, consequentemente minha prima em segundo grau. Chamo-a de Tia Ruth e, pela afinidade nos escritos, aqui estou. Tia Ruth nasceu no Monjolo em 19 de dezembro de 1936, filha de Felisberto Luiz de Oliveira e Enedina Maciel de Oliveira. Em 6 de maio de 1961 casou-se com Guy Maikot, natural de Florianópolis e mudou-se para Itajaí, onde reside até hoje. Atualmente tem 82 anos, uma linda família, formou-se em Direito na Universidade do Vale do Itajaí/SC em 1982 aos 46 anos, faz lindos trabalhos manuais e transita com leveza encantadora na área literária. Este relato foi extraído do seu blog intitulado ENTRELINHAS & RETALHOS, aberto por sua neta Amanda em 2009. São várias postagens e delas, foi extraído a maioria dos depoimentos ou pequenos relatos – em absolutamente nada alterados por mim, exceto em pequenas inserções por mim solicitadas diretamente à autora - que permeiam a história da família, por tantos anos guardada e somente agora aberta para comunicação e posterior publicação. Vale registrar o teor poético com que a história foi escrita em 2009. Uma história com resgate de amor e requintes poéticos, ou melhor, de muito amor que envolveu a família a partir da história principal.
Em 05/03/2009 ela escreveu: (...) Deu uma vontade de falar na minha mãe, mas é muito difícil descrever os anjos. Quem a conheceu sabe disso. Ela era a filha mais velha de Sinhá e Abílio, mas este é um relato imenso, uma entrelinha que desde criança pretendo desvendar e não consigo. Falarei em outra ocasião. É uma longa história. Boa noite. (...)
Em 16/04/2009: Estava com saudade do meu blog e de conversar, talvez comigo mesma. (...) Falando em infância, tenho uma dívida com minha família e sou cobrada sempre, quer pelos filhos, pelos netos ou sobrinhas. Pagá-la é que são elas. Mas vou começar e sei que acharei o caminho, pois é uma história real, acontecida com minha avó materna e que me intriga desde pequena. Falo desde pequena, porque visitava os parentes com meus pais e lá estava o retrato de uma família. Pai, alto, bonito, bigode espesso; mãe, ar suave, meio sorriso, doce, afetiva. Ao redor deles, crianças, algumas maiores, bem vestidas, outras de colo ainda. Eu amava aquela foto. E a sequência de encontros com ela se repetia sempre, e, pasmem, repete-se até hoje, pois quase todos da família vão conservando esta foto em suas paredes. Não faz muito tempo descobri que no verso dela, bem escondido, há uma poesia que o senhor da foto dedicou à sua amada, lá pelos idos de 1895. Mas voltemos à menina curiosa que se encontrava com o mesmo retrato em tantas paredes, sempre indagando, perguntando, descobrindo talvez o que não devesse ser descoberto até. Eram meus avós maternos e uma das meninas da foto, a mais velha, era minha mãe. Deveria ter uns oito anos quando pegou na mão amorosa de sua mãe para posar para a posteridade. E posteridade no sentido exato da palavra. Mas qual seria a história deste casal que todos emudeciam quando eu perguntava? Minhas tias desconversavam, minha mãe marejava os olhos, talvez de uma saudade infinita, uma mágoa escondida. Nem quando me fiz adulta ela me contou a história. Sei que, já doente, fez suas confidências à prima Gladis, sua afilhada e ai pôs para fora esta dor antiga que a acompanhava sempre. Não lembro de ouví-la falar de sua infância com os pais. Quando falava do passado, era para o orfanato onde foi criada que se reportava. Ai sim o sorriso aflorava, era uma saudade diferente, deixava brilho nos olhos e não lágrimas, trazia à tona um mundo mágico, embora vivido num orfanato.
Quando eu soube da história de Sinhá e Abílio, os personagens da foto, chorei muito por estes avós que não conheci. E, à noite, no silêncio da fazenda, ou já no internato, eu embalava os órfãos que sinhá deixou e indagava o porquê de sua atitude. Muitas vezes, já casada, fiz dos meus filhos os filhos de Sinhá e tentava dar mais amor ainda.
Sinhá era uma mulher bonita, alta, mãos de fada, pois a lembrança mais palpável que tenho dela são as toalhas caprichosamente bordadas que minha mãe conservava com cuidado. O tecido de cor sépia, tingido pelo tempo, com as flores vermelhas, de um vermelho vivo que os anos não conseguiram modificar. Penso que Sinhá teria sido uma mulher fogosa para seu marido. Tiveram tantos filhos, viveram amorosamente e a separação, pela morte de Abílio, foi forte demais para a esposa. Bem, é neste momento que me prostro genuflexa diante daquele retrato e peço licença à Sinhá. Posso contar seu gesto de loucura, ou de amor, ou de solidão? Confesso que me sinto mal, parece que estou traindo esta avó que não conheci, que não toquei, de quem não recebi um abraço, um bolinho de chuva, uma história mágica contada em noites de insônia. Será que é por isto que busquei ser uma avó presente, contadora de “causos”, onde sempre havia um espaço para uma personagem parecida com Sinhá? Quem sabe…
17/04/2009 - Sabem que ontem nem sei se senti alívio ou aflição, mas um sentimento novo morava em mim. Terá sido a coragem de começar a contar o que sei de Sinhá? Pode ser que sim e novamente peço à ela que me dê passagem aos seus mistérios, suas alegrias, suas dores. Faço com profundo respeito e amor, com admiração e uma ponta de pesar por não ter tido seu carinho, seu colo, sua ternura. Quando Sinhá e Abílio casaram, foram morar na localidade de Passo das Moças, Santo Antônio da Patrulha, já mais para o lado de Gravataí. Lá se estabeleceram com um armazém de secos e molhados, um precursor dos supermercados de hoje. Sinhá não sabia ler, mas ninguém a enganava nas contas. Cuidava da venda, paria suas crianças a cada dois anos e amava seu esposo desesperadamente. Em volta da casa havia a horta, um jardim onde Abílio colhia a cada manhã uma flor para sua amada, árvores onde os pássaros faziam seus ninhos e cantavam suas melodias. A máquina de costura era manual, talvez seja aquela que a Didi (Alexandrina Rosa de Oliveira, madrinha de meu pai) tinha consigo, não tenho certeza. Mas ali Sinhá cozia as roupas dos filhos, o enxoval daquele que porventura estivesse em seu ventre e a vida seguia feliz. Enedina, minha mãe, era a filha mais velha. Depois veio Alice e desta em diante não sei a ordem de nascimento, mas vieram Germínia, Dejardem, Ney, Maria, Noca (apelido), Darci e Abílio. E é em Abílio (filho) que vou me deter. Sinhá, mais uma vez engravidara. Eram muitos filhos, ponderavam os parentes, mas o que fazer se o esposo não se cansava daquele corpo meigo que o aquecia nas noites em que o minuano soprava louco lá fora? Se, quando se sentia triste, era naquele corpo que encontrava a paz? Que muitos outros viessem, havia um oceano de amor naquele casamento. Abílio, o pai, amava uma carreira em cancha reta, costume que, penso, ainda perdura no Rio Grande do Sul. Para isto tinha um belo cavalo, bem cuidado, bem tratado e orgulho de todos. Um domingo, deixou a boca de Sinhá úmida de seu beijo demorado, abraçou a meninada e foi para a cancha. Sinhá, como sempre, deixou-se rodear pelos filhos e se pôs a contar histórias. Histórias que ouvira em sua infância, tradição oral, pois já disse, era analfabeta, coisa que naquela época não se estranhava. O sol percorreu o céu e começou a descambar no horizonte, mas nada de Abílio. Coisas de homens, pensou Sinhá e afastou o pensamento mau para longe … mais demora e a noite já queria engolir por completo o dia, quando ouviu-se um cavalgar célere que se aproximava da casa. Pressurosa, Sinhá foi esperar seu amado. Não estava naquele cavalo e o pressentimento de uma tragédia começou a lhe oprimir o peito. Quem cavalgava tão rápido era o vizinho e amigo mais próximo. Pediu licença, apeou de seu tordilho e, colocando o braço no ombro de Sinhá disse: houve uma queda do cavalo, Abílio não está bem e vou ajudá-la no socorro. Aí sim, já outros carreiristas trouxeram o marido, colocaram no seu leito, onde Sinhá, meio aturdida, tentou amenizar a dor com compressas quentes, chás, mas nada acontecia. Aquela mulher amorosa, delicada, com o ventre crescido de mais um filho, transformou-se. Começou a dar ordens para que pusessem os bois na carreta, a parelha mais forte, que fosse feita uma cama macia na carreta, (carreta significava aquela puxada por juntas de bois) e buscassem as crianças. Ela iria para Santo Antônio, para a casa da sogra, Maria Luiza, buscar socorro. E foi. Queria por asas nos animais, tentava aquecer com seu corpo o corpo doente do marido, acalentava os filhos, e rezava, rezava muito. Que os céus não ousassem roubar o seu homem, não viveria sem ele. Pela madrugada chegou em Santo Antônio, onde os cunhados e os sogros acudiram o doente, mas foi tudo em vão. Abílio (pai) sofrera um aneurisma da aorta e faleceu. Sinhá uniu sua dor a de Maria Luiza, a sogra, esta mãe de dezesseis filhos e sentiu seu castelo de sonhos ruir. Sepultado Abílio havia-se que pensar na solução. Maria Luiza, também uma mulher guerreira, propôs a Sinhá que ficasse em sua casa com as crianças, até que o filho que abrigava em si nascesse. Assim foi feito. E uma das coisas que não esqueço e que me foi contada pela Didi (minhas primas sabem quem é), foi que Sinhá cobriu-se de luto, jogou fora seu lindo sorriso, foi perdendo as carnes aos poucos, a ponto de aparecer apenas a imensa barriga. E que costurava muito. Fazia vestidos para as meninas, calças, casacos e camisas para os meninos, a ponto de encher o baú. E o enxoval do bebê? - indagava Maria Luiza. Sinhá mantinha-se imóvel, sem responder, olhar enlouquecido pela saudade, posto em qualquer lugar do horizonte. Cada dia afastava-se mais da realidade. Se estava no fogão de lenha torrando o grão de café, suas lágrimas escorriam pela chapa quente e iam morrer em meio às chamas. Segundo contava Didi, ela chorava sempre, uma fonte inesgotável de saudade. E Didi contava isto para mim e minha irmã em palavras baixas, quase sussurradas, pois morava com meus pais e já disse, o assunto era tabu. Mas eu sempre colhia um fato aqui, outro lá, alguém deixava uma frase no ar e eu ia formando meu raciocínio. E chorava, muitas vezes chorava sem dizer o porquê. Era um misto de dó, de pena, nem sei se de Sinhá ou das crianças que ela deixou. Foi um sentimento que me acompanhou durante anos e que lutei muito para deixá-lo para trás. Quando Sinhá sentiu aproximar-se a data do parto, exigiu de sua sogra que a deixasse ir para sua casa com as crianças. E foi, pois nada a demoveu desta ideia. Da mesma forma que trouxera Abílio inconsciente, fez o caminho de volta. Encontrou apenas abandono, a horta sem verduras, até os pássaros haviam se ausentado daquela árvore onde cantavam ao entardecer. A fonte, espelho d`água onde outrora misturava sua imagem com a de Abílio, estava suja, folhas haviam apodrecido dentro dela e tirado sua pureza, enfim, uma tapera sem dono. Mas era ali que haveria de nascer seu filho, era ali que Abílio estava esperando para lhe dar a mão na hora do parto. Antes , chamou seu vizinho e amigo e conversou longamente com ele. Ninguém sabia o que dissera a ele, somente mais tarde descobriu-se o segredo. Um dia Sinhá acendeu o fogo mais cedo, aqueceu chaleiras de água, mandou que viessem com a parteira. Chegara sua hora. Como enfrentá-la sozinha? Estava fraca, sem forças, Enedina e Alice, as filhas mais velhas é que estavam cuidando da casa e dos irmãos. Puxavam água da fonte, cozinhavam, lavavam, ofereciam comida à mãe, esta, porém, negava-se a comer. Enedina, minha mãe, já com 11 anos estava sempre atenta ao movimento da casa. Sabia que algo estava prestes a acontecer. E viu sua mãe, muito trêmula, tomar de um copo com uma beberagem que ela desconhecia e ingerir todo o seu conteúdo. Em seguida foi para o leito e deixou que a natureza se encarregasse de tudo. Vieram as dores, veio a agonia, veio um chamado débil pelo esposo falecido e Sinhá morreu. No mesmo instante em que sua vida terminava, um belo menino começava sua jornada na terra. Sinhá, enlouquecida, tomara veneno, queria levar consigo este filho, um presente ao marido, pensava ela. Mas estava escrito que aquela criança nasceria antes do veneno matar Sinhá. Chamaram-no de Abílio, homenagem ao pai. E por hoje me fico, pois ainda dói nesta neta a história de sua avó. Ainda chora esta neta a orfandade das crianças de Sinhá e Abílio. Boa noite. E não se preocupem que, depois desta tragédia, a continuidade trará histórias muito bonitas que serão contadas cada uma a sua vez. Boa noite.
19/04/2009 - Bom dia, bom domingo aos que, para minha alegria acessarem este blog e, se ninguém ler, bom dia a mim mesma e faça do seu dia um instante maravilhoso, dona Ruth. Vou fazê-lo, prometo.
(...) Agora voltemos ao assunto que me propus contar. Não tenho colocado datas, pois considero toda história de amor uma coisa meio atemporal, repete-se a cada instante, cada dia, em todos os tempos, cada uma com suas nuances, seus amores, seus dissabores.
Quando Sinhá expirou, havia que se providenciar o funeral e, urgia mais ainda, cuidar de alguém que acabara de nascer e ficar órfão. Imagino que minha mãe, sendo a mais velha, já com 11 anos, viu-se na obrigação de embalar este irmãozinho recém nascido e que não tinha sequer um seio onde saciar sua necessidade de se alimentar. Novamente entra em cena o vizinho a quem Sinhá confiara algum segredo. Tomou à frente de tudo e mandou um mensageiro para a localidade de Monjolo, também em Santo Antônio, avisar ao cunhado de Sinhá, Avelino Luiz de Oliveira, que lá se estabelecera também com armazém de secos e molhados. Este chegou com sua esposa, Maria Rosa e com o filho Felisberto (Bebeto), meu pai. Entre os lamentos que se ouvia, Bebeto viu uma menina linda, de 11 anos, embalando seu irmão. Foi o primeiro instante em que aqueles primos se conheceram e cada um gravou dentro de si a imagem do outro para sempre. Desta tragédia começava a nascer uma história de amor. Levaram o corpo de Sinhá para Santo Antônio, e, descobriu-se, finalmente, o que segredara ao vizinho. Pediu a ele que, se morresse no parto, fosse sepultada no mesmo lugar do esposo. Este senhor, de quem nunca soube o nome, cumpriu à risca sua missão e puseram Sinhá ao lado de Abílio. Terminava aí uma história de amor, de felicidade, de paixão e de loucura.
Começava outra, porém. Que fazer com Abílio, o filho recém nascido? Por enquanto encontrara um seio onde saciar sua fome, uma alma misericordiosa estava repartindo seu leite entre um filho, também recém nascido e o pequeno Abílio. E as outras crianças, que destino lhes dar? Separá-las, dividindo-as entre os numerosos tios?
Bem, preciso explicar que meus avós, paterno e materno, eram irmãos, filhos de Maria Luiza e do professor Francisco, dois entre os dezesseis filhos que o casal tivera. Vovô Avelino, homem sério e ponderado, a quem mal conheci, tomou a resolução. Mandaria o recém nascido para seu irmão Isalino, pai de muitas filhas e de nenhum varão. Sabia que lá Abílio seria rei. Coube a Felisberto, aquele que guardou dentro dos olhos a imagem da prima Enedina desde o instante em que a viu, a incumbência de levar esta criança para Rolante, onde morava Isolino com sua família. Bebeto, apelido de meu pai, conhecia bem aquelas trilhas, aquelas estradas sinuosas, pois andava por elas desde muito pequeno com seu pai comprando produtos coloniais para o armazém que possuiam. Ninguém mais indicado para esta tarefa. Mas com 11 anos, admirava-me eu? Entendi depois que, naqueles tempos difíceis, um garoto de 11 anos tinha suas tarefas, árduas muitas vezes e já era responsável por vários trabalhos dentro da família. E, me contaram, Maria Rosa, esposa de Avelino, era uma mulher severa, determinada, fazia os filhos cumprirem seus deveres rigorosamente. Então colocaram um cavalo à disposição de Bebeto, deram-lhe a criança no colo, uma mamadeira de leite e outra de água, jogaram aquelas capas gaúchas sobre eles e os despacharam para a cidade de Rolante, distante cerca de 40 km de Santo Antônio. Hoje não é mais distância, mas naquela época, sem estradas, a cavalo, com um bebê recém nascido … contavam as pessoas que sempre orbitaram em torno de minha mãe (e eram muitas) que Bebeto sempre se absteve de contar os percalços pelos quais passou, poupando-a de mais sofrimentos.
Pois bem, ao bater na casa do tio Isolino, com uma criança no colo, um varão ainda, e após contar a tragédia porque aquela criança e seus irmãos acabavam de passar, Isolino e sua mulher sentiram que o céu lhes mandara um presente. O amor foi instântaneo, intenso. Abílio virou rei naquele lar. Cada sorriso seu era festejado com palmas, cada progresso uma alegria para os pais e irmãs por adoção. Abílio, a quem não conheci, viveu até os 20 anos, sempre muito amado, quando veio a falecer. Lembro que, novamente vovô Avelino entrou em cena, pois chegou em nossa casa do Morro Grande, muito sério, falou com meu pai, depois chamou minha mãe. Vi que em seguida ela chorava muito, por muitas horas, inconsolavelmente. Soubera da notícia da perda deste irmão que só conhecera recém nascido e que embalara por poucas horas.
Enquanto Abílio crescia e era feliz com os pais adotivos, seus tios na verdade, Edelmira (Noca) crescia e era feliz também com os padrinhos que tomaram conta dela até casar. Os outros meninos, Dejardem, Darci e Nei foram para o Instituto Champagnat e as meninas, Enedina, Alice, Germínia e Maria foram encaminhadas por vovô Avelino e seus irmãos ao orfanato Padre Cacique em Porto Alegre. (...)
Interpelação da comunicadora:
Na época o orfanato era chamado Asilo Madre Teresa, instalado em 1846 num prédio em frente ao Rio Guaíba e mais tarde recebeu o atual nome, ou seja, Asilo Padre Cacique, num prédio considerado histórico que em 1885 recebeu a visita da Princesa Isabel. (fonte: Wikipedia)
A Escola Santa Teresa era uma escola para meninas, fundada por D. Pedro II como homenagem à Imperatriz Teresa Cristina. A edificação foi projetada pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, que havia chegado ao Brasil em 1816 com a Missão Artística Francesa, tornando-se o principal arquiteto do império até sua morte em 1850, e um dos responsáveis pela difusão da arquitetura neoclássica no Brasil, contribuindo para o abandono das velhas soluções coloniais. O colégio foi um dos dois únicos prédios projetados por Montigny fora do Rio de Janeiro. A construção foi feita por etapas, tendo iniciado em 1846. Foi concluída apenas em 1864 pelo Padre Cacique, que empenhou-se na conclusão das obras, inaugurando alí uma escola para meninas órfãs. (fonte: www.ipatrimonio.org)
A Instituição leva até hoje o nome do seu idealizador, Joaquim Cacique de Barros. O padre baiano começou a construção do então Asylo da Mendicidade (inicialmente para atender mendigos) em 1881, e era ao mesmo tempo administrador, operário e arquiteto. O Imperador D. Pedro II mandou suspender as obras em 1883, alegando que não concedera licença para construção de uma casa de mendigos no terreno do Colégio Santa Tereza. Em viagem à Província do Rio Grande do Sul em 1885 a Princesa Isabel conheceu o Padre Cacique e recebeu de moradores uma petição solicitando a revogação do embargo, a ser entregue a seu pai. Em 1887, quando o Imperador teve que se afastar para tratamento de saúde, ela assumiu a regência do Império e revogou a ordem de embargo das obras, dando licença para continuidade.
(fonte: Padre Cacique, a história contada em fotos – livro ainda não publicado).
(...) Eu não tive a informação de que modo foram parar lá, como foram obtidas estas vagas e porque não ficaram na família, já que eram tantos tios. Mas sabe-se lá se não foi o melhor, pois minha mãe e Tia Alice tinham belas recordações deste tempo. O que imagino, apenas imagino, é a mágoa em se separarem e depois a difícil adaptação à uma vida estranha, fora de todos os padrões em que foram criadas. Sei que, isto me contaram, se buscavam à noite para dormir juntas ou o mais perto possível, quem sabe para amenizar um pouco o espanto e a saudade. Tinham saudade de suas bonecas de pano, feitas por Sinhá e que, coitadas, ficaram lá no Passo das Moças, entregues ao esquecimento face à tragédia ocorrida. Tinham saudade do pai e da mãe, do riso fácil de ambos, das histórias contadas na boca da noite, dos pássaros que cantavam, naquela árvore logo ao lado da varanda. Tinham saudade do colo do pai, do aconchego da mãe, da cama macia, de penas, da fonte onde buscavam água, tinham saudade de si mesmas quando lá viviam ... mas não se preocupem, o Orfanato para onde foram era dirigido por anjos, na pessoa de três senhoras viúvas, Dona Cecília, Julieta, sua filha e da outra filha não lembro o nome. Mas este é outro capítulo que contarei a seu tempo, pois merece até uma reflexão; o modo como era dirigido, o carinho que existia, a didática com que era dirigido, um lar enfim. Lá minha mãe viveu até os 21 anos quando, por força do regulamento, teve de sair. Foi buscá-la um certo primo e seu pai, primo este que ela guardava a imagem dentro dos olhos e que, por sua vez, também capturara sua beleza e de quem nunca esquecera. Não disse que aquela hora de desespero e estupefação com o gesto de Sinhá fizera nascer um romance? E que, deste romance estou aqui? Bom dia, um domingo de paz e amor para alguém que tiver a paciência e a compreensão de ler este blog. Olha o que fez a Amanda com seu gesto: colocou diante do computador uma velha avó que, confesso, precisava colocar para fora esta história. Um beijo a todos os meus netos, meus amores lindos, cada um do seu jeito, mas todos maravilhosos. Obrigada Deus, por ser avó, pois as minhas me negaram, pela morte prematura suas histórias, seus colos macios, sua ternura de avó. Até mais ...
ORFANATO, VIDA NOVA
Boa noite, amigos. Estou escrevendo sobre um assunto que era tabu na minha família e de quantos a este episódio fossem ligados. Agora que cheguei no instante de falar sobre o orfanato ou Asilo Padre Cacique, preciso antes tecer algumas considerações, traçar alguns parâmetros. Quando se fala, nos dias atuais, sobre alguma instituição que abrigue menores órfãos ou abandonados, nos vem à mente um amontoado de crianças ou adolescentes sendo maltratados, vivendo quase no inferno. Porém, graças a Deus, lá não era assim. D. Cecília, de quem ouvi minha mãe e tias falarem sempre e com muito amor, mantinha um lar. Ela e suas filhas, Julieta e outra cujo nome me foge, eram viúvas e se dedicaram a esta causa. Vinham meninas de todo o Estado e todas eram recebidas com amor, respeito e carinho. Minha mãe, passada a fase de adaptação, tornou-se uma das auxiliares de D. Cecília. Ajudava no quanto pudesse. Além disto cuidava das irmãs, especialmente Maria, que era muito frágil de saúde, sofria do coração. Governava o Rio Grande do Sul, naquela época, Borges de Medeiros. Sua esposa encomendava suas roupas íntimas para as meninas do asilo, pois eram exímias bordadeiras. Todas tinham sua caderneta de poupança e ali depositavam o dinheiro arrecadado com este trabalho. Engraçado, sei muito mais coisas do tempo em que minha mãe viveu no orfanato do que os 11 anos que esteve entre seus pais. Penso que o trauma foi tão grande que apagou muita coisa da memória daquelas crianças. Contava D. Dina, minha mãe, que uma vez por ano faziam um passeio pelo Rio Guaíba, iam até a Ilha da Pintada, onde faziam um piquenique, e que este passeio era esperado e preparado como se fosse o dia mais importante para elas. Iam de gasolina, acredito que o nome de uma embarcação daquela época.
Havia, entre as meninas alí internadas, uma que se chamava Nitinha. Vi muitas vezes a fotografia dela. Era de rara beleza e muito amiga de Enedina. Quando iam ao centro de Porto Alegre entregar os bordados ou comprar alguma coisa para D. Cecília, diziam que, se estivessem ao lado de Nitinha, ninguém olhava para elas, tal a formosura daquela moça. E D. Cecília tinha um hábito que me cativa até hoje: quando chegava no orfanato alguma interna nova e que fosse pequena, era entregue aos cuidados de uma maior. Assim, certa vez imigrou para o Brasil uma família de franceses e foram se instalar em Santo Antônio da Patrulha. Família Pommier. Não sei se ambos faleceram, ou apenas um. O que sei é que a filha mais nova deles, Adelaide Pommier, foi levada para o orfanato ainda muito pequena. D. Cecília chamou Germínia, uma das irmãs de minha mãe já mocinha, e incumbiu-a de cuidar de Adelaide. Tia Germínia o fez com tanto zelo e carinho que Adelaide, ao sair do orfanato aos 21 anos, tornou-se um membro da família de Germínia, que já estava casada e com filhos. Eu conheci Adelaide, Adelaidinha para os íntimos. Ela faleceu não faz muito, a cerca de 6 ou 7 anos, na localidade de Igrejinha, sempre tendo por perto alguém da família de Germínia. Vejam que exemplo maravilhoso. Faziam-se irmãs lá dentro, embora de sangue diferente.
Interpelação da comunicadora:
Em 08/08/2019 recebi contato da autora fornecendo mais algumas informações, recebidas da prima Eronita, filha da sua tia Germínia, a saber:
“Falei com a Eronita, ela conviveu muito com Adelaide Pommier e me contou que ouvia dela histórias do orfanato. Contava que havia um sótão e lá tinha vestidos de princesas (verdadeiras?) Que elas vestiam e desciam as escadas felizes. Minha mãe foi muito feliz lá.”
“Também contou (Eronita), que a louça tinha os brasões do império, assim como a porta de entrada do orfanato”.
Em 06/09/2019, em contato pessoal com uma neta de Germínia, Maria Aparecida dos Santos Braga, filha de Iolanda Beatriz Assis, tomei conhecimento de 2 edições encadernadas por ela da Revista “La Familia”, Revista de labores para el hojar XV Aniversario 1946” que pertencera à Adelaide Pommier, que era madrinha de sua mãe. A revista, além de muito antiga, tem características muito peculiares, pois reúne diversos assuntos: bordados com linha normal, bordados com ponto cruz, corte e costura, dicas de beleza, de estilo e de jardinagem, modelos de chapéus, de penteados, enfim ... uma variedade sem tamanho de assuntos, intercalados por propagandas de alguns produtos que ainda se encontra no mercado, a exemplo da Revlon. Em várias páginas algumas marcações, certamente por trabalhos feitos por ela, confirmando a qualidade do que aprenderam no Orfanato.
Maria Aparecida comentou também que sua avó Germínia também tocava piano e foi, em certa ocasião, professora na Escola Santa Teresinha de Taquara, lembrança muito bem guardada por uma de suas alunas Edith Reis.
Minha tia Alice, a quem já me reportei, lia tudo o que encontrasse pela frente e, ao sair do orfanato, foi professora no Monjolo, até casar com Diogo Assis e ir morar nas Lombas, também Santo Antônio da Patrulha. Foi a tia com quem mais conviví. E conto para vocês, ela podia estar na roça, no açude lavando roupas, no fogão cheio de panelas de ferro que, perto de si tinha um livro que era lido avidamente. Era dona de um português correto e, especialmente, de uma bondade sem limites. Tenho tanta saudade dela … também faleceu, não faz muito tempo, aos 96 anos de idade, na cidade de Cachoeirinha/RS. Deixou numerosos filhos, dentre eles minha prima Maria, de quem gosto muito. Durante a enchente por aqui no ano passado, esta prima me telefonou e se pôs à disposição para o que eu precisasse. Foi muito bom ouvir sua voz naquele momento e saber que temos alguém, lá de nossa infância que se preocupa com a gente.
Com a continuidade do meu blog, começaram a aparecer primas e sobrinhas que possuem documentos, respaldando o que conto. Espero recebê-los em breve. Maria Lucia, minha sobrinha, tem as cartas que D. Cecília escrevia para minha mãe, após a sua saída do orfanato e casado. Quero reproduzí-las para quem estiver acompanhando esta narrativa. Eram muito bem escritas, caligrafia linda, papel primoroso e transmitiam uma sentimento maternal. Eu as lí muitas vezes, eram um dos tesouros de minha mãe. Engraçado, nunca ví fotografia de D. Cecília, apenas sei que era uma mulher bonita, alta e de uma meiguice infinita. Muitas vezes minha mãe encomendava missa por sua alma, como se sua mãe ela tivesse sido.
E eu, que agora abro esta gaveta de minha alma, reverencio D. Cecília, imaginando que ela foi, sem saber, uma das personagens do meu imaginário infantil. Que tenha recebido na morte todas as graças que em vida prestou às órfãs que dela dependeram enquanto viveu. Boa noite, mas tenho muito a contar ainda. Vocês não imaginam como é bom esvaziar a alma, e é o que estou fazendo. Jamais imaginei que fosse capaz, um dia, de fazer isto. E num blog, aos meus 72 anos, nem eu acredito. Lá se foi o velho e amarelado caderninho de recordações. Quem diria ...
QUEM ERA SINHÁ
23/04/2009 - Tenho falado tanto nesta avó, mas jamais mencionei a que família pertencia. Seu nome era Maria Maciel e era irmã do Coronel Paulo Maciel, pai do Sr. João Marques de Moraes. Portanto, minha mãe era prima do Seu Moraes. Sei que tinha uma irmã chamada Rosália, ou Rosária e que ambas casaram no mesmo dia. Sei também que a mãe de Sinhá, também se chamava Maria e era conhecida por Sinhazinha. Mais longe não vou, por ignorar raízes mais antigas. Que vieram dos Açores também sei, não eles, mas seus antepassados.
Gente amiga, nosso pensamento quando retoma o caminho do passado, parece uma longa estrada onde vamos encontrando nossos antepassados, suas histórias, suas vivências. E tem bifurcações por onde fugimos, retalhos de vida se misturando, se encontrando, tecendo cada um sua saga. É um caminho onde não chegamos jamais ao final. Parece aquelas páginas bíblicas, onde se lê quem gerou quem, até o infinito. Estará lá, no infinito, Deus? Será ELE o fim da estrada?
Bem, tenho escolhido sempre a noite para escrever, pois tenho mais sossego, nosso doentinho* já dormiu, a mente está mais solta. Portanto, boa noite a quem este blog acessar.
Ainda falando no orfanato, lembro que minha mãe contava que, a seu lado tinha uma paineira linda e que, quando espalhava a paina pela Porto Alegre de então, parecia um sonho, uma nuvem branca contrastando com o azul das águas do rio Guaíba. Quando ela, mamãe, ficou doente, prima Gladis, sua afilhada, ajudou muito nos cuidados em Porto Alegre. Gladis e João Pedro, seu falecido esposo e meu pai levaram Enedina até o local do orfanato. Gostaria de ter estado ao seu lado neste momento de volta ao passado. Dizem que ficou silenciosa, olhos postos em algum momento do passado e muito pesarosa porque aquele lar de outrora ter se transformado numa prisão. Jamais voltou ali, a não ser em pensamento, onde buscava o antigo lar onde vivia sob os cuidados de D. Cecília.
Aqui faço uma pausa para agradecer à prima Gladis o quanto foi carinhosa e prestativa com sua madrinha, minha mãe. Gladis, sei que estás colhendo os frutos deste ato de amor.
Quando minha mãe completou 21 anos, teve que sair do orfanato, por conta das regras alí impostas. Seu tio Avelino que, contavam, ia todos os anos, no Natal visitá-la e levar um corte de tecido, encarregou-se de buscá-la. E levou em sua companhia o filho Bebeto. Levaram Enedina para Taquara, onde ficaria na casa dos tios Izalíbio e sua esposa Rosinha até casar. Sim, porque Bebeto, já havia pedido a prima que conhecera no dia da morte da mãe em casamento e só esperava que se providenciasse o enxoval, o que os tios fizeram com muito carinho. Seis meses depois estavam casados e morando no Monjolo. Contavam que vieram pelo Rio dos Sinos, àquela época navegável, em uma embarcação chamada gasolina. Desceram bem alí onde era a ponte velha do Monjolo. Olhem o que fizeram com nosso rio, coitado …
Mas as irmãs de Enedina permaneciam lá, ainda sob a guarda de D. Cecília e, à medida que iam completando 21 anos, meu pai ia buscá-las. A exceção foi Maria, esta já referí que era muito doente. Meus pais a trouxeram para casa e cuidaram dela até falecer. Eu tinha mais ou menos 3 anos quando ela partiu. E sabem do que lembro? Que eu encontrei uma caixinha cheia de coisas coloridas, verdes, vermelhas e que brincava com elas. Até que D. Dina descobriu e deu fim. Eram as cápsulas de remédios que Maria tomava. Imaginem se eu as engolisse? Não estaria aqui para contar a história ... rs. Morávamos no casarão do Monjolo, bem em frente à capela de São Paulo, onde anos mais tarde casei. Em 1941 fomos para a localidade de Morro Grande. Foi um ano que deu uma enchente muito grande no Rio dos Sinos. Meu pai não foi conosco porque seu irmão Salvador (tio Dodô) havia sido operado da vesícula e estava no hospital do Dr. Mário Espíndola, em Santo Antônio.
Mas e os filhos homens de Sinhá e Abílio? Qual destino tiveram? Pouco sei sobre os primeiros tempos após o falecimento trágico da mãe. Mas sei que foram para o Instituto Champagnat. Todos casaram, formaram suas famílias e, quando a família Oliveira fez um encontro em Santo Antônio, reví algumas de minhas primas. Foi um encontro muito bom, muita emoção, muita saudade… Por hoje vou ficando, não sem antes dizer que, ao longo do caminho de volta que estou percorrendo, estão ficando muitos retalhos esparsos, muitos fatos que não me chegaram ao conhecimento ou que, se chegaram, a memória deixou escapar. Quem sabe alguém da família, lendo este blog, tenha alguma informação ou retifique algum trecho que fugiu à realidade. Boa noite e paz na vida de quem ler meus escritos. Eles estavam gestando dentro de mim desde sempre, apenas eu não ousava escrevê-los. Sempre que eu via o retrato de Sinhá eu sentia esta ânsia de expor os fatos. Portanto, estou pagando uma dívida comigo mesma.
DIA DAS MÃES
09/05/2009 - Hoje eu queria falar a poesia mais linda, ter nas mãos o buquê mais colorido para poder reverenciar a memória de minha mãe. Já disse que um dia falaria muito sobre ela. São tantas lembranças, sons, sabores, trejeitos, sorrisos e trabalho, muito trabalho. Dona Enedina deixou, na memória de quantos a conheceram e com ela conviveram uma fatia grande de ausência. Ela era aquela menina de 11 anos, a qual já me referi quando falava em Sinhá. Sim, aquela que viu a mãe tomar a misteriosa beberagem. Penso que este instante jamais se apagou de sua memória, pois minha mãe era uma pessoa de sorrisos, apenas sorrisos, mas tristes, tão tristes que calavam fundo na alma da gente. Sua experiência de vida, órfã e depois criada em orfanato, incutiram nela a bondade, a ternura, o amor a todos quantos dela se aproximassem. Sua casa, tanto no Monjolo quanto no Morro Grande, era frequentada por todas as pessoas, ricas ou pobres. E a estes, os humildes, ela dedicava especial atenção. Jamais alguém saiu de sua porta sem estar alimentado e levando em suas mãos algo mais para comer. Ela era despojada de vaidades. Sua grande meta era ajudar quantos dela precisassem. Assim, quando casou, recebeu em seu lar a madrinha de meu pai, Alexandrina, a nossa Didi. Ela, Didi, viveu desde pequena na casa de meus avós paternos. Foi madrinha de meu pai, a quem ajudou a criar. Casado, trouxe a madrinha consigo. Tornou-se uma grande amiga de Enedina, que cuidou dela até seu falecimento, em 1947, já em idade avançada. Havia também outro personagem de minha infância que viveu até sua passagem, sob os cuidados carinhosos de minha mãe. Era negro, filho de escravos, mas nasceu já sob a égide da Lei do Ventre Livre. Achegou-se à família através de meus avós paternos e ficou em nossa casa. Cuidava da horta, mantinha o quintal impecável, fazia plantações em volta de casa e era, especialmente um cão fiel de Enedina e sua família. Chamava-se Januário e sua morte deixou-me muito triste. Era um homem solitário, os poucos parentes que tinha moravam em Porto Alegre e ele os visitava uma vez por ano. Mas logo retornava para nossa casa, seu verdadeiro lar. Quantas vezes eu vi minha mãe cansada, quase no seu limite e Januário tirar a massa do pão que ela fazia e tomar conta da tarefa. Vá descansar patroa, eu cuido de tudo. E os olhos ternos daquela menina que, aos 11 anos sofreu a grande tragédia de sua vida, se umedeciam de agradecimento.
Meus pais tiveram seis filhos, sendo que dois faleceram ainda bebês, com 6 meses. Depois veio a grande perda que sofremos na família, minha irmã Maria Rosa faleceu após dar à luz uma menina. Tinha apenas 34 anos. Creio que Enedina jamais se recuperou desta perda.
Mas ela renascia, qual Fênix e reassumia seu papel, pois a vida exigia isto dela. Lembro que o padroeiro da capela do Morro Grande era e é São Sebastião, de quem Enedina era fervorosa devota. Sabe-se lá porque fez a promessa de, durante sete anos, rezar o terço naquela capela, para a comunidade. E cumpriu, com a capela sempre cheia dos moradores daquele lugar. Não havia chuva ou tempestade que a segurasse em casa domingo à tarde, pois era o horário da reza. E durante sete anos ela assim procedeu.
Muito, mas muito mais tenho a dizer sobre esta que me carregou em seu ventre. Mas palavra alguma traduz quem ela realmente foi. Suas netas e netos, aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-la, até hoje se referem a ela como vó Dina, como se ela estivesse ali ao nosso alcance.
Mesmo já doente, foi resignada e suportou sua doença sem queixas, sem imprecações até que, em 05 de outubro de 1970 fez a passagem para um plano mais elevado de vida, tenho certeza.
Bem, minha mãe, nem sei se algum dia eu disse que te amava, mas se não o fiz, faço agora e reverencio teu caráter, tua coragem, tua maternidade e teu sorriso meigo e triste, de quem tem, lá bem longe, escondido no passado, uma história de perda e solidão. Tenho muita saudade de ti, mas é uma lembrança doce, suave, tal como foste em vida. Esta é a minha homenagem pelo dia das mães. Que estejas no lugar merecido e cuidando de nós que ainda percorremos a trilha terrena, que ainda juntamos pedaços desta imensa colcha de retalhos que é a vida.
Saudade … só saudade…
Amigos, boa noite. Peço desculpas pelo tempo em que me demorei a retomar a este blog. Mas foram tempos férteis, pois muitas coisas foram descobertas, outras relembradas, outras ainda modificadas. Minha memória armazenou fatos que, para mim, eram reais, só que com pessoas diferentes. Depois corrijo. Hoje, com muita emoção, coloco neste blog uma poesia que Abílio, meu avô materno, dedicou a sua amada Sinhá, em 16 de agosto de 1898. O autor? Desconheço, mas a caligrafia é de Abílio. Isto me despertou sentimentos estranhos. Saudade de minha mãe, pena de não haver conhecido estes avós, desejo de que um dia tivesse ganhado um carinho deles. Mas ... se foram sem conhecer seus netos, aliás, deixando suas crianças desprotegidas. Quero agradecer minha prima Eronita que me forneceu este documento e espero descobrir mais e mais. Quero ir fundo nesta história, uma vez que ela me acompanha desde criança, conforme já narrei em outras postagens. Conto a vocês que também mantive contato com o Asilo Padre Cacique, que ainda existe em Porto Alegre. Infelizmente não souberam me informar sobre as internas do Instituto Santa Teresa, um braço do Padre Cacique. Segundo soube, em 1945, o governo interveio neste Instituto e toda a documentação foi perdida. Assim, as lembranças que pensava resgatar com mais consistência estão perdidas.
Conto ainda a vocês que, por meio de minha sobrinha Maria Lucia, resgatei uma carta, escrita em 1929 por D. Cecília à minha mãe, por ocasião do nascimento de minha falecida irmã Maria Rosa. Na realidade são duas cartas, pois D. Cecília, ao escrever para minha mãe, o fez para tia Alice também, uma vez que ambas já estavam fora do orfanato, pois haviam completado 21 anos. Enedina, ao casar, buscava suas irmãs quando completavam a idade limite permitida pela instituição.
Mas o que quero destacar neste post, com esta poesia, (se alguém souber o autor que me passe), o imenso amor e cumplicidade que havia entre Abílio e Sinhá. Dizem que desde que se conheceram, suas vidas se entrelaçaram de tal forma que não viveriam mais um sem o outro.
Imaginemos o mundo de então, vida na roça, sem vizinhos próximos ou muito próximos, sem qualquer noticiário bombardeando suas mentes, viviam mesmo no mundo que sonharam construir. Para eles nada havia além das pequenas fronteiras de sua morada. Se música ouviam, era o trinado dos pássaros, se vozes ouviam, eram os filhos rindo e brincando no vasto quintal que são os destas casas antigas construídas nos campos. Até o bambuzal que agasalhava a morada dos meus avós, por certo cantava para eles ao entardecer. Já ouviram o som de um bambuzal, ou taquareira como nós, os gaúchos, dissemos? É muito bonito e no Rio Grande do Sul as pessoas faziam suas moradas ao abrigo dos ventos, circundando-as com plantações de bambus. Costume que, penso, existe até hoje. O bambuzal, ou taquaral, vem, quase sempre, acompanhado de uma figueira frondosa, à sombra da qual os gaúchos tomavam e tomam seu sagrado ”mate amargo”.
Bem, para recomeço espero ter criado fôlego para contar toda esta saga de Abílio e Sinhá. Mas não pensem que vou deixar de garimpar mais provas deste amor, sou teimosa e cumprir esta tarefa é uma determinação minha.
Imaginem uma pessoa carregar isto desde a infância? Foi o que aconteceu comigo. Mas ”entrelinhas e retalhos” fui buscando um pedaço alí, outro aqui, até que comecei a montar esta história que tanto me intrigava.
Mas uma coisa digo agora, acho que isto me serviu para ser a vó mais coruja deste mundo dos meus oito netos, de não negar colo a eles até hoje, mesmo que estejam adultos, casados, seguindo seus rumos na vida. Cada vez que chegam aqui querem um colinho. Que o diga a Marina, a Amanda, Ana Carolina, Andrezinho então é useiro e vezeiro neste colo.
A Helena, esta nem se faz de rogada, colo para ela é sagrado … graças a Deus.
CORRIGINDO INFORMAÇÕES
Oi, que todos estejam bem, leiam ou não minhas postagens.
Farei neste novo post uma correção. Contava, alguns posts anteriores, que minha tia Alice tocava piano e cantava. Porém, recebi a informação da prima Terezinha Assis Andrade, filha de Germínia, que era esta a cantora e pianista. Depois soube mais, que lia partituras, era uma artista. As partituras, eu quis saber onde se encontravam. Imaginem poder anexá-las a este blog que, se Deus quiser, vai virar livro. Contou-me então, Eronita, também filha de Germínia, que elas, em criança, brincavam com as mesmas e possivelmente as tenham perdido. Que pena …
Disse, ainda a Terezinha Andrade, que aprendeu a cozinhar com sua mãe Germínia, ao som de hinos religiosos que ela cantava e que eram muito lindos. E que ela, até hoje, gosta muito de ouvir e cantar músicas deste teor. Que bela recordação esta órfã abrigada por D. Cecília deixou aos seus descendentes. Confesso que a conheci, convivi muito tempo e ignorava estes fatos.
Devo, ainda, as pessoas que estejam acompanhando estes retalhos de vidas, a tradução para nossos dias, do poema dedicado por Abílio a Sinhá em 1898 e já postado em artigo anterior. Vou transcrevê-lo tal como está, ou seja, com a ortografia da época:
Desde o instante em que te vi tão bella
meu pobre peito se ellevou por ti
o fogo intenso que abrazou minh’alma
o fogo santo que em teus olhos eu vi
Eu nunca nunca me senti tão preza
Por lindos olhos como os teus que eu vi
Oh tudo eu déra para poder gozar
Tantas delícias que eu encontrei em ti.
Quanta ventura em teu rosto angélico
Quanta candura em teus rosto tem
Em toda parte em qualquer paragem
A tua imagem acompanhar-me vem.
Offerecido á Da. Maria Maciel de Moraes
Santo Antônio, 16-8-98
O 98 é 1898.
Vejo agora, relendo e transcrevendo este poema, que era uma autora, devido a frase da segunda estrofe ”eu nunca nunca me senti tão preza”.
Recebi, também, lá de Santo Antônio, a Folha Patrulhense, datada de 08.06.89*, onde D. Julieta Bemfica, colaborando com o jornal, envia o poema acima e uma foto (aquela que acompanhou meu crescimento e aguçou minha curiosidade) e faz um apelo a que os descendentes deste casal se manifestem.
Matéria publicada pelo Museu Juca Maciel, intitulada “Romper as amarras é preciso”, página 5.
Bem D. Julieta, eis aqui a resposta, esteja a senhora onde estiver. Demorou mas veio. Como disse, quando os filhos de Sinhá estavam aqui neste plano, mal podíamos tocar no assunto. Entendo, pois devia doer muito mesmo. Imaginem a tragédia para estas crianças. Mal haviam perdido o pai, já perdem a mãe, vão para um lugar estranho, têm de se separar do irmão recém nascido, também da irmã Edelmira (Tia Noca), pois esta ficou aos cuidados dos padrinhos. Nem tem como dimensionar estas perdas tão próximas umas das outras. Por isto o sorriso triste de minha mãe, afinal ela era a primogênita desta família e sentia-se responsável pelos irmãos a quem amava profundamente.
Por hoje, muita paz a todos nós, dela precisamos para poder realizar com êxito nossa caminhada aqui na mãe terra, este pontinho remoto de nossa galáxia. Boa noite.
Informo ainda que D. Julieta Bemfica era prima de minha mãe, já que Sinhá era irmã do Cel. Paulo Maciel.
CARTA DE DONA CECÍLIA PARA ENEDINA E ALICE
24/07/2009 - Oi, boa noite, paz a todos nós. Gente, está um frio danado. Aquí em Itajaí, que eu me lembre, nunca foi tão frio assim. Gelado … gelado …
Hoje vou transcrever uma carta que D. Cecília, Diretora do Instituto Santa Tereza, à época em que as órfãs de Sinhá e Abílio estiveram lá, mandou para minha mãe e sua irmã Alice. Hoje transcrevo e amanhã posto cópia do original. A caligrafia de D. Cecília era linda, impecável.
Dina hoje recebi tua cartinha participando a chegada da Maria Roza.
Que seja mesmo uma roza de coração e que Nosso Senhor e Nossa Senhora lancem sobre ella suas Divinas Bençãos. Queiras e Bebeto acceitarem meus sinceros parabéns.
Hoje mesmo quando fui a cidade levar a nova a D. Picucha, Julieta, Albina e por um portador (o Caruba) mandei participar a Cecy.
O Caruba anda em trabalhos com o Henriquinho; o Zeca Mendonça deu
um tiro nelle e está se tratando na Santa Caza.
Dar um tiro no Henriquinho da maneira que anda doente é o mesmo que atirar em um cadáver, é uma vilania, estão todos muito indignados contra elle. Enfim
Beija por mim a Rozita e acceita junctamente com Bebeto muitas saudades desta amiga de sempre
Cecília
em 13 de junho de 1929
Alice juncto com esta carta receberás outra escripta a muitos dias e não tive portador.
Primeiramente dou-te meus parabens pela sobrinha, imagino que faceira que não estás, agora não tenho mais esperança de receber cartas tuas, vaes viver de beijos e abraços com a sobrinha nem te lembrarás mais de ninguém.
Alice as bluzas brancas vieram para a procissão de corpos Christ e na vespera receberam bluzas sinzentas para as missas aos domingos.
A nossa presença na procissão cauzou muito boa impressão ganharam um estandarte muito lindo. O padre recebeu muitas felicitações, em ultima hora o Sr. Almanzor trouxe 3 boinas brancas para as que carregavam o estandarte ( Germínia e de cada lado Judith e Ondina) a boina em Germínia dá um effeito admiravel, fica simplesmente linda. Demaneiras que…as Therezas andam na ponta.
Agora andamos grangeando amizades com a Sra. do prezidente do estado. Já veio cá gostei muito dèlla é muito sem serimonia muito agradavel e ando atrahindo p”cá a Carmem Annes Dias só me falta aqui uma arreganhada como no tempo da Dina.
Ainda tenho muita couza para contar-te, porém estou passando a cacete fica para outro dia.
Sempre que pergunto a Ventura e Germinia quando respondem tuas cartas não (inelegível)e se não respondem não vás pensar que ataco.
Alice acceita muitas lembranças minhas e mais conhecidos.
Cecília
Olhem a preciosidade da amizade que se formou entre esta doce senhora chamada Cecília e suas órfãs, não só minha mãe e tias, mas tantas quantas viessem a perder seus pais e ficassem ao desamparo.
Pondero que a carta foi transcrita tal e qual se encontra escrita, ou seja, com a ortografia de antigamente, e bota antigamente nisto. Bem, a cada novo documento que recebo sinto que novas portas se abrem em direção ao passado, que novos retalhos vão se unindo pelos fios indeléveis tecidos pelo tempo.
E fico a pensar, estas meninas sofreram a perda dos pais, a separação dos irmãos mais novos, depois encontraram este remanso de paz, carinho, aconchego e amor neste orfanato. Mas também lá não estavam em seus lares definitivos. Teriam de sair um dia, aos 21 anos e cá fora, no mundo, traçar um novo caminho. Não conheciam ninguém em Santo Antônio. Seus tios, embora numerosos, tinham suas vidas, seus filhos, suas histórias que também estavam sendo escritas.
Minha mãe sei que foi retirada do orfanato por seu tio Avelino, pai de Bebeto (eram primos), colocada em Taquara aos cuidados do tio Izalino e sua esposa Rosa. Lá fez seu enxoval, namorou Bebeto alguns meses e logo casaram e vieram morar no Monjolo. Mas esta é outra história da qual sou também personagem …
Sei também que nutro por D. Cecília, até hoje, uma espécie de reverência, um sentimento intenso de agradecimento, algo delicado como o orvalho ao amanhecer, como a pétala da flor quando desabrocha, como a lágrima que desce lenta pela face, curando a ferida interior. Pois assim teria que ser, afinal ela fez o papel de avó para nós, descendentes destas meninas de Sinhá que ali foram abrigadas.
E a valentia de minha mãe ao enfrentar a doença que a levaria para um plano superior, por certo se deve aos imensos percalços que a vida lhe ofereceu e que ela, valentemente foi vencendo um a um. Tomara que, estejam elas onde estiverem, tenham se encontrado para dar continuidade a esta amizade cá do plano terrestre.
Boa noite.
CARTA DE DONA CECILIA PARA ALICE – 24/07/2009 (data da redação no blog)
Interpelação da comunicadora:
Em 04/09/2009 recebí algumas informações complementares, através de contato pessoal, do tio Donaldo Luiz de Oliveira, irmão da Tia Ruth, a saber:
Rosália, irmã de Sinhá, era casada com o pai de Alziro Alano, da Catanduva. As duas contraíram matrimônio no mesmo dia e eram naturais da Data (atual localidade de Alto Data).
Maria, uma das irmãs de Enedina faleceu solteira, aos cuidados de Enedina, depois de adoecer no Asilo. Ela tocava piano.
A mãe de Abílio, segundo ele de nome Maria Viega Batista, veio de São Pedro das Torres e casou-se com Francisco Leopoldino de Oliveira, o vovô Chico.
A Edelmira (Noca), irmã de Enedina, foi criada pela Tia Celina Batista de Oliveira, casada com Maneca Gil, residentes na Miraguaia.
Quando Enedina chegou no Asilo o Padre Cacique recém havia falecido. No seu lugar estava o Padre Matias.
Com 16 anos Dejarden, irmão de Enedina foi para o Rio de Janeiro e sentou praça no exército como voluntário. Saiu de lá como Cabo Ferrador de Cavalo. Voltando para Porto Alegre trabalhou como Guarda Freio de trem e terminou como Fiscal de Trem, já no tempo do Trem Húngaro.
Nei, irmão de Enedina, trabalhou como motorista de praça em Porto Alegre e foi criado pelo Tio Isalino.
Darci, outro irmão, foi também criado pelo Tio Izalino, nos Passinhos, até sair para casar.
Abílio, o irmão mais novo de Enedina, foi criado pelo Tio Isolino no Rolantinho, na Colônia Monge. Morreu de tétano. Teve uma unha arrancada numa topada em uma pedra. Mesmo assim calçou sapatos e foi para um baile. Na manhã seguinte descalçou os sapatos e contraiu a doença.
As irmãs de Enedina, Germínia, Alice e Noca, casaram-se respectivamente com Idalino Assis, Diogo Bemfica de Assis e Sidoca Silveira.
Quando Enedina e Felisberto se casaram fizeram o trajeto de Taquara para o Monjolo de “gasolina”, um tipo de barca usada no Rio dos Sinos. Na ponte do Monjolo as gasolinas subiam para carregar arroz, milho e outras produções.
Certa vez, em consulta com o Dr. Aldo Chaves em Porto Alegre, Enedina foi abordada pela secretária. A sua mãe, de nome Marina Campelo, tinha sido criada no Asilo na mesma época.
Inúmeras foram as missas que Enedina mandou rezar em memória e agradecimento à D. Cecília. Este fato, segundo o Tio Donaldo, sempre foi muito marcante.
Apresentada quando do evento RAÍZES/RAIZINHA 2019 em Santo Antônio da Patrulha/RS