O Tio Valdir da Kombi

“Estás pronta?”

“Apanha o material. O Tio Valdir chegou!”

“Corre, corre, o Tio Valdir chegou!”

“Boa tarde Tio Valdir! Obrigada!”

“Valeu Tio Valdir!”

Essas frases começaram a fazer parte do cotidiano de muitas famílias em 1987 quando o Sr. Valdir Adam Cerveira, com espírito empreendedor e visão em um mercado extremamente carente no nicho de transporte escolar resolveu, com duas kombis, dar início à uma relação profissional e ao mesmo tempo com crianças e suas famílias. De lá para cá o “Seu Valdir” nunca mais foi o mesmo, deu lugar ao “Tio Valdir”, assim como nem os modernos micro-ônibus de agora foram substituídos pelas kombis nas suas citações. O bordão ficou e ele ficou para sempre conhecido como o TIO VALDIR DA KOMBI.

Eu, neste momento comunicadora, não conhecí pessoalmente o Tio Valdir, mas um fato, no dia posterior ao seu falecimento me fez prometer que eu escreveria algo sobre ele. Num primeiro momento pensei em uma crônica para o Prosa na Varanda, livro publicado de 2 em dois 2 pelo Grêmio Literário Patrulhense, mas meses após vislumbrei o Raizinha deste ano. E qual foi o fato? Nesse dia, circulando pela cidade baixa, deparei-me com 2 de seus filhos conduzindo os micro-ônibus, com faixas pretas em sinal de luto. Achei um tanto estranho. Mais tarde tomei conhecimento de que os seus filhos, naquela manhã, cumpriram todo o seu ritual de trabalho para depois encaminharem-se para a despedida do pai no Morro Grande, não deixando uma criança sequer sem chegar no seu destino, fato esse que comoveu-me e reforçou todo o carinho e respeito que eu sempre percebí nos seus clientes em relação a ele.

Nasceu em Taquara em 11/11/1949 e, muito cedo veio para Santo Antônio, iniciando as suas atividades na colheita manual de arroz para lavoureiros da região. Posteriormente, com a carteira de habilitação em mãos, foi motorista de caminhão, entregando farelo no estado e motorista da Unesul, transportando passageiros para municípios vizinhos.

Seu amigo Pedro Silveira Ramos, em 06/09/2019, em um final de tarde chuvosa, concedeu uma entrevista cheia de entusiasmo. Comentou que o pai do Tio Valdir, Sr. Valdomiro, cuidava da fazenda da D. Carlota Meregalli no Morro Grande. Seu filho Arlindo Meregalli abriu campo na Esquina dos Morros e levou o Tio Valdir, com menos de 18 anos, formalizando o seu primeiro trabalho. Posteriormente o Tio Valdir e o amigo Pedro foram trabalhar na fazenda do Sr. Ari Fogaça, de onde boas lembranças ficaram, a exemplo da comida que era feita em fogo de chão.

Quando o Sr. Arlindo Meregalli mudou-se para o Passo dos Ramos, o Tio Valdir, já “metido” a dirigir tratores, foi o responsável por trazer a bolante (casinha para dormir, guardar mantimentos e fazer comida). A partir daí já começou a dirigir caminhões.

Posteriormente, junto com o amigo Pedro (que passou a ser seu cunhado), foi trabalhar em Viamão na fazenda do Sr. Nerci Rosa. Foi então que tirou carteira de motorista de caminhão.

Tempos depois trabalhou com o conhecido Davi Baratão em um Engenho de Casquinha, no Cartucho, já na cidade de Santo Antônio.

Fez teste na Unesul e lá trabalhou por vários anos como motorista pelas cidades vizinhas. Foi quando percebeu que em Gravataí havia Kombis escolares. Decidiu empreender e vendeu o Corcel que tinha e trocou por uma kombi. Quando saiu da Unesul comprou a segunda Kombi, para dar início ao transporte escolar em Santo Antônio.

Em 08/02/1975 casou-se com Aracy Gomes Cerveira. Teve cinco filhos: Vilmar, Valdinei, Vilson, Angela e Vladimir e quatro netos: Maria Livia, Gabriel, Elena e Venâncio.

Na década de 80, em conversa com Arlete Tedesco, expôs a sua idéia de transporte. A sua primeira passageira foi a sua filha, Luana Tedesco Betiol, que estudava na Escola Adventista. Não levou muito tempo para que o Tio Valdir já transportasse crianças em dois turnos. Dentro de sua Kombi várias amizades foram firmadas, a exemplo do carinho que Luana ainda tem de Ramon Cunha, que, junto com ela tinha os seus cuidados a cargo dele. Posteriormente, no Colégio Santa Teresinha, com autorização da Direção, começou a captação de clientes para transporte escolar.

Arlete lembra que a sua filha era a última a ser entregue pelo Tio Valdir e que em inúmeras ocasiões, em função do horário, ele a levava para sua casa, aos seus cuidados, até que chegasse a hora da chegada da sua mãe em casa. Lá ela encontrou outra família, tendo o Vilmar (primeiro filho do Tio Valdir, apelidado de “mano”) como um tipo de pai. Arlete fez questão de deixar registrado que, em função do seu grande envolvimento profissional, era o Tio Valdir que era chamado em qualquer situação de anormalidade com a Luana na escola, a exemplo de uma febre ou qualquer problema que possa ter ocorrido. Ele passou a ser muito mais do que o responsável pelo transporte da filha.

A sua empresa sempre esteve lotada na Rua São Paulo, 622, na Cidade Baixa e, além dela, o seu melhor lugar era na sua segunda casa, no Morro Grande, onde cultivava plantas para o consumo próprio, cuidava do gado, mantinha a chácara organizada e programava festas juninas e encontros de família animados.

Zoraida Rivero, em 16/09/2019 recebeu-me em sua residência para mostrar-me uma foto do Tio Valdir com ela e seus antigos alunos da pré-escola do Colégio Santa Teresinha na década de 90, saindo para um trabalho externo. Com grande carinho lembrou-se dele, ainda menino, quando vinha à cavalo do Morro Grande para cursar o primário na Escola Padre Reus na década de 60. Foram colegas e tem uma forte lembrança de onde o cavalo ficava amarrado: em um pé de sinamomo próximo à escola.

Lembrou que, na época em que era professora no Colégio Santa Teresinha e o Tio Valdir já havia empreendido no transporte, as crianças eram buscadas por ele na sala de aula, no prédio conhecido como do Juvenato. Lembra-se também que a sua filha ngela o ajudava, trajando vestidinhos estampados, franzidos na cintura. Uma empresa familiar rapidamente encarada com respeito e seriedade, pela forma como desde o início foi conduzida. Lembra-se também de que, com a maior paciência, o Tio Valdir instruía as crianças para que sempre caminhassem atrás dele até o embarque da Kombi, buscando sempre a maior segurança possível para elas. Uma cena ela lembra com muita clareza: o Tio Valdir e um “carreirinho” de crianças atravessando o pátio até chegarem no portão.

Em uma das imagens da apresentação está Danilo Martins Collar com o qual encontrei-me em 18/09/2019. Falando na foto ele comentou que, além do transporte escolar, quando ele já estava na adolescência, o Tio Valdir costumava fazer o trajeto do Colégio Santa Teresinha para a Chácara de sua avó, Sra. Lourdes Borges, para levá-lo, com mais amigos, para confraternizações que lá aconteciam. O cuidado e dedicação eram os mesmos.

Retornando ao encontro com seu grande amigo Pedro, ouvi que ele era homem de coração gigante, não tinha preguiça para nada e ficava doente se não pudesse servir. Desde o início sempre teve uma preocupação muito grande em adequar os seus serviços às necessidades dos clientes. Gostava de caçar quando era permitido, de pescar e de fazer brincadeiras animadas com amigos. Boas lembranças o amigo Pedro tem da habilidade que o Tio Valdir tinha em arrumar arames e “badulaques” diversos para amarrar em carros de amigos recém-casados, sempre de surpresa.

Foram feitas alguns contatos com pessoas que tiveram alguma relação com ele depois da implantação das Kombis, com o objetivo de deixar registradas memórias e a história de um homem com tanto valor.

- Jair Otto de Oliveira, pai da Jaiane: “em 2001 o Valdir começou a levar e trazer a minha filha para a Escola Madre Tereza e depois para Escola Padre Reus. Por todo esse período foi imperiosa a sua segurança para com as crianças. No nosso caso, já que eu e a minha esposa trabalhávamos em fábrica de calçados, ele esquematizava o horário certo deixar a nossa filha quando já havíamos chegado. Eu sabia que ele acabava desviando a rota, mas sempre fez de bom grado para que ficássemos satisfeitos. Foi essencial no desenvolvimento da Jaiane. Lembro-me que na época a sua filha ngela recolhia as crianças.”

- Suzana Rocha, mãe de Diego de Oliveira Rocha: “meu filho, desde 1987, no maternal, até o 1º ano do 2º grau foi transportado pelo Tio Valdir. No início o Vilmar o auxiliava. Geralmente o Diego era o 1º a ser apanhado e o último a ser deixado. Lá pelas 06:40 o Tio Valdir passava pela nossa casa. Lembro-me de que ele fazia todo o controle e cadastro em um caderninho e a cobrança era sempre feita diretamente no nosso comércio. As crianças gostavam muito dele e também o respeitavam. Imaginem que naquela época o cinto de segurança não existia e ele, com pulso firme conduzia nossas crianças sem que ficássemos com qualquer receio. Jamais permitiu um passageiro de pé. Como ele exercia essa liderança eu não sei; mas sei que ele sempre conseguia a disciplina das crianças. Quando o Diego chegou próximo dos seus 15 anos pediu-nos que não mais queria ser transportado pelo Tio Valdir, alegando que quase não mais cabia no micro (sim, naquela época as kombis já tinham sido substituídas). A resposta do meu marido foi a seguinte: “enquanto tu conseguires entrar no micro, tu vais com o Tio Valdir. Nossa segurança e ponto encerrado.” Por outro lado, o Tio Valdir entendia muito bem que, na adolescência, os jovens já queriam andar com suas próprias pernas e, certo dia me abordou: “Suzana, o Diego e a Roberta pediram para que eu os deixasse na esquina e não mais em frente à tua casa. Como eles já estão maiores, eu acho que ficará bem. O que achas?” É claro que eu concordei!”

- Claire Mary Winck de Barcelos, mãe de Germano, Rosália e Marquinhos: “em 1987 o Tio Valdir começou a transportar os meus filhos Germano e Rosália para o Colégio Santa Teresinha. Eles o adoravam. Pena que não foi muito tempo, pois logo foram transferidos para a Escola Espírito Santo, próxima da nossa casa. Mas o que mais me lembra o Tio Valdir foi quando, em 1995, já transportando o meu terceiro filho, o Marquinhos, sem qualquer constrangimento comentou comigo que percebia algo estranho no menino. Meu filho é autista e, na ocasião, ainda não tinha sido diagnosticado.”

O seu pioneirismo e carisma foram certamente transmitidos aos filhos, que atualmente conduzem a empresa firmes no seus propósitos.

Aprentada quando do evento RAÍZES/RAIZINHA 2019 em Santo Antônio da Patrulha/RS

Rosalva
Enviado por Rosalva em 04/01/2021
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