A MULHER DE VERMELHO
Seu nome era Jacira. Ela era tão bonita quanto uma mulher madura pode ser. Usava sempre vestidos longos, em vários tons de vermelho, e o cabelo ondulado solto às costas. Só contava histórias de amores impossíveis, casamentos frustrados, traições e separações. Contava com um tom de voz calmo e triunfante, como se estivesse narrando uma vitória em vez de uma desilusão. As mulheres de suas histórias choravam mas não sucumbiam; mordiam o pó mas voltavam a se erguer; perdiam mas se afirmavam; por isso mesmo era mais adequado dar-lhes admiração em vez de pena.
Dizia-se dela que era descendente de ciganos. Mas ela nunca falava nisso. Tinha em casa a fotografia do falecido marido numa moldura, homem moreno e bem apessoado, mas sem nada que indicasse senão o homem comum. O filho, casado, vinha duas vezes ao ano e a pequena chácara se enchia dos risos das netinhas. Tratava de galinhas e porcos para consumo próprio e ela mesma os degolava e limpava as carcaças. Amassava seu pão e cultivava abóbora e mandioca, roças de pouco trabalho e muito rendimento.
Arrastava um namoro de anos com o seu Gabriel da venda que, todo feriado e dia santo, era visto a chegar na casa da viúva com seu Gol quadrado. Não tinham intenção de se casar, para não interferir na herança dos filhos. Nem de se separar, acomodados que estavam um ao outro como um casal de corujas. Nada era segredo na pequena comunidade.
Toda quinta-feira, dona Jacira reunia uma dezena de meninas para a aula de bordado. Elas vinham porque as mães também já tinham vindo. E ouviriam porque as mães já tinham ouvido. O tema do dia era ponto cruz e a história da princesa Soraia.
A princesa que casou por amor com seu príncipe, cujo reino, maior, anexou o reino do pai dela, rico em minérios, como parte do acordo de casamento, que foi seguido pela coroação. Trocaram os votos diante do sacerdote e os guardaram numa urna de porcelana acima da cama. E a voz calma descrevia a beleza do palácio, as festas, as atividades do casal real. Até que, certo dia, assim como os ovos das cobras chocam no calor, pequenos detalhes foram realçados à sua visão. Soraia percebeu que seu marido a traía com a melhor amiga. Procurou seus conselheiros e ouviu que a esposa devia ser tolerante com as pequenas indiscrições do marido, como parte de seus deveres conjugais. E, com isso, ela se sentiu sozinha e fraca. No baile seguinte, viu o marido conduzir a traidora para a saleta masculina. Pisando macio, chegou-se à porta e testemunhou o beijo apaixonado que trocaram. Era demais para ela. Em seu vestido de gala, correu desesperada para longe, cada vez mais longe, até que o amanhecer encontrou-a no bosque. Passava neste momento um lenhador, que, reconhecendo-a, perguntou:
-- O que fazes no bosque, minha rainha?
-- Fujo de minha dor.
-- A tua dor irá para onde fores, assim como a árvore segue a semente.
Voltando sobre seus passos, encontrou uma taberna e assentou-se para tomar vinho.
-- O que fazes no meu balcão, minha rainha? Perguntou o taberneiro.
-- Fujo de minha dor.
-- A tua dor irá para onde fores, assim como o álcool segue o vinho.
Inconformada, seguiu de volta para os jardins do palácio onde encontrou a ninfa das águas, que também lhe perguntou:
-- O que fazes no jardim, minha rainha?
-- Fujo de minha dor.
-- A tua dor irá para onde fores, como a água segue a correnteza.
Nesse ponto, dona Jacira interrompia a narração para verificar se as meninas estavam ouvindo. Atentas e segurando seus bordados, as meninas seguiam cada gesto dela. Esperavam, talvez, que Soraia ficasse triste para sempre, ou que chamasse a bruxa para amaldiçoar os traidores. Satisfeita com a reação, prosseguiu:
Então a rainha reagiu. Entrando nos seus aposentos, tirou a roupa suja e arrumou-se com elegância e severidade. Era um mundo de homens com leis feitas por homens, mas ela sabia de algumas coisas. Sabia que a água segue a correnteza. Que a árvore vem da semente. E que não se separa o álcool do vinho. Sabia que o reino não permitia a separação do príncipe, mesmo assim tomou da urna votiva e, a sós com o esposo, disse-lhe que sabia de tudo. Sabia que a palavra dada acarreta obrigações e queria reparação. Caso contrário abandonaria o reino, expondo-o à reprovação dos súditos. Diante daquela que tinha sido sua melhor amiga, negociou. Colocou ambos diante de decisões irrevogáveis. Obteve do príncipe a devolução em dobro das terras de seu pai e dela uma indenização em dinheiro. De um só golpe, conseguia a independência do reino paterno e a sua própria. Daí em diante, era deixar que o tempo curasse seu coração. Dedicou-se a viajar e aprender. Viveu longos anos, mais do que o rei, e em nenhum deles olhou para trás. E fim.
Dona Jacira olhou em volta. Viu os paninhos suspensos no ar. Viu os grandes olhos das meninas aprofundados em pensamentos. Deu a aula por encerrada e, uma a uma, elas foram tomando seu rumo a partir da grande varanda onde passaram a tarde.
Tangará da Serra, 04/01/2021.