DOMINGO DE CHUVA

Tinha como seu o roteiro de vida mais comum: nascer, crescer, casar, procriar e morrer. Aceitando a crença de que a vida era isso, tinha uma estrutura que a manteria de pé nos anos vindouros para cumprir suas metas. Com um atrevimento extra: se formar na faculdade de Administração. A primeira da família a ir para a faculdade. Era muito esforçada em seu primeiro emprego e namorava para casar. Aos dezoito anos, os planos estavam se realizando muito bem.

Iria à missa com a família no final da tarde e depois, com seu previsível namorado, ao cinema. No momento estava quase cochilando depois do almoço de domingo. O vento refresca a tarde modorrenta. Via a silhueta do pé de boldo pelo vidro martelado da janela. O quarto estava morno. A mente pulava de um assunto a outro. Qual vestido usar de noite. Terminar de registrar o kardex. Entregar um trabalho na faculdade. A sapatilha azul estava descolando no calcanhar. As contas do mês. Uma gracinha do namorado. A briga com a irmã do meio. Lembranças com as amigas do ensino médio. Como se achavam adultas então, mas agora via como eram ingênuas.

O gato pulou na cama, distraindo-a dos pensamentos. Logo se enrodilhava aos seus pés e adormecia. Gato lembrava gatuno e gatuno lembrava kardex. Era grata ao seu padrinho por arranjar-lhe o emprego na autopeças. Não se via diante de uma registradora de supermercado dez horas por dia. Mas aguentava oito horas em pé atrás do balcão. O corpo jovem se adaptava à carga e correspondia. O objetivo do momento era descobrir se faltavam mesmo peças no estoque ou se era uma simples falta de registro. Até descobrirem, seu Ivan manteria todos em rédeas curtas. Principalmente a oficina. Ela era a única encarregada de receber as requisições. Uma prova de confiança. Gostava disso. No futuro, depois de formada, esperava um cargo no andar de cima. No setor administrativo. Iria ganhar mais, mas precisaria aprender ainda mais.

Lá fora, as nuvens começavam a obscurecer a luminosidade do sol. A luz no quarto passava lentamente de clara para nublada. Ouviu a mãe saindo para tirar as toalhas do varal. Tinha comprado uma lavadora-secadora para ela, parcelada, a partir do primeiro pagamento. Sentia muito amor pelos pais e um desejo de retribuir enquanto eles estavam neste mundo.

Pois um dia haveriam de partir, como é desde sempre no mundo. Ela mesma também teria sua hora, não importando quantos esforços fizesse ou quantas horas de trabalho aguentasse. A única certeza da vida é a morte, o pai sempre dizia. Completamente relaxada, deixou a ideia penetrar fundo em si. Viu seu caminho até o presente, viu o caminho organizado que esperava para o futuro, e sentiu perplexidade. O que era mesmo morrer? Fechar os olhos, deitar-se, ir para o céu? Deixar de mover-se no tempo? O fim de toda luta, mas e se a pessoa amasse estar na luta?

Teria que ir mesmo assim. Que hora era aquela, desvinculada de todo intento humano, vontade de Deus a colocar um ponto final em toda atuação, em todo sentimento?

Sabia que podia construir uma vida para si. O que não sabia era o porquê da humanidade continuar construindo, só para abandonar tudo. Se a morte dependesse da vontade, a faria acontecer ali, agora, enquanto ainda não estava desgastada nem desiludida. Tentou dar ao corpo um comando para morrer. Imaginou que flutuaria acima do corpo e depois iria para uma luz. Nada aconteceu. Não funcionou. Devia haver um sentido em construir só para deixar para trás. Os espíritas falavam que cada um tem a sua missão. Mas não gostava da ideia de ter uma missão sem saber qual era. Gostava do preto no branco. E não considerava a morte como parte de seu planejamento de vida e sim, como o fim dele.

Ela queria viver eternamente. Com a mãe e o pai, os irmãos, os filhos que teria. A vida que tinha era tudo que conhecia. Tudo o que amava. O tempo só acontece na presença da matéria. E ela gostava de ter tempo. Não queria adormecer para acordar no paraíso. Queria ir na missa logo mais. Bem viva e bem desperta.

Lá fora a chuva veio a cair. Começou com pingos grossos e se firmou em cordas praticamente contínuas, caindo dos beirais do telhado com força suficiente para deixar marcas no cimento. E no seu quartinho morno, ela dormia.

Tangará da Serra, 02/01/2021.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 02/01/2021
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7150221
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