2021 e a dama descalça
Minha maior alegria deste primeiro de janeiro de 2021 deve-se a um fato orgânico: amanhecer vivo. Acordar, levantar-se sóbrio, ouvir os barulhos das frequentes buzinas automobilísticas desfilando pela rua, olhar ao redor e sentir que, apesar dos pesares, ainda o fim não chegou. É com essa razoável satisfação em saber que, para mim, a passagem de ano não chegou a ser passamento que início este ano "novo". Penso que venci 2020, apesar dos prognósticos "convidescos". Embora não tenha ganhado a Mega da Virada, minha maior e fantasiosa pretensão, chego a 2021 vivo e com poucas dívidas monetárias a pagar, ainda que sóbrio em excesso.
Trocando em miúdos, reitero, penso que venci. Tudo poderia ter sido pior. Em 2020, eu poderia ter ficado estanque no caminho, parado por bala perdida, pela covid, por briga em mesa de bar, por descontentamentos no trânsito, por enfarte; casado; adquirido dívidas volumosas; ter tido o nome no SPC/SERASA; arranjado unha encravada e, de quebra, uma sogra. Nada disso me aconteceu, e aqui estou, a reconsiderar que talvez eu não tenha vencido 2020.
Olho pela janela, saio à rua, uma linda moça passa desfilando sorriso sozinha. Parece feliz e sóbria, e eu me pergunto se isso pode, pois, tal qual se sabe, a ciência comprova, felicidade e sobriedade não combinam. Vestida de branco, leva no dedo anelar direito um anel. Parece que é noiva. A risonha moça caminha como se fosse sua primeira experiência no mundo, tendo todo o tempo a seu lado, toda airosa, ainda mais porque descalça e com cabelos revoltosos. A cena me lembra outra de um filme recente a que assisti, de cujo nome não me recordo no momento, mas penso ser um de final infeliz.
A guapa segue, eu fico. Vou à árvore mais próxima, sento-me, olho as horas, 9h30, bocejo, um passante me felicita um ano novo próspero e saudável e de muitas alegrias. Eu não censuro o otimista camarada, e até lhe retribuo os louvores. "Mais com pouco", como diz um letrado nas ruas amigo meu, vem um carro importado e com vidros escuros lacrados, para em frente a mim, abre-se uma comporta, uma cabeça humana surge apressada e falaz: "Bom dia, colega. Você viu passar por aqui uma moça vestida de branco, descalça e bêbada?".
Pensei um momento, fiz até mistério, respondi: "Não, essa eu não vi não. Passou por aqui uma dama descalça, de branco, toda risonha e feliz, ignoro o destino. Bêbada, não posso afirmar: faltam-me critérios científicos." O inquisidor me agradeceu as informações, desejou-me feliz ano novo, deu uma buzinadinha, partiu. Eu fiquei, ali, sentado e confuso, a pensar na felicidade e embriaguez da dama descalça.
2021 inicia cheio de mistério.