Sofá e miragens
Acordei há pouco, mas parece que durmo. A rua é a mesma, a casa é a mesma, a cama é a mesma, todos esses lugares que habito parecem ser os de sempre, a exceção deste sofá no qual estou detido. Tento me acomodar nele, e sou repelido. Há pessoas a meu entorno e coisas, ambas mecânicas, como de regra, exceto este sofá. Será que ele está de ressaca ou cheio de minhas confissões?
Se este sofá falasse, provavelmente me pediria folga neste último dia do ano, e talvez apostasse na Mega da Virada. Trezentos milhões de reais para folgar e viver de juros, não é ruim não. Com esse montante, talvez deliberasse morar de frente para o mar, que sempre almejou viver em meio à brisa e maré; ou, quem sabe, se enraizaria no meio da selva africana, rodeado de sol e ervas medicinais; ou, menos provável, hibernaria dentro de uma barraca na Sibéria, envolto em silêncios e gelo. Por enquanto, considerados os agouros da estatística, essas projeções não passam de miragens, com dose de otimismo e suposição.
365 dias deste ano bissexto suportando pessoas, coisas, animais bípedes, quadrúpedes, banho de café e de outros líquidos menos nobres, aspirando, sendo aspirando, chega o último dia do ano, quer livrar-se desse eterno retorno. Natural esse querer despir-se dessa sensação de viver, principalmente às primeiras horas comerciais dos dias, como se estivesse em uma roda gigante, subindo e descendo sempre pelas mesmas paradas, inanimado.
Em hora de confissão, admiti que esta vida cansa montão e o aproxima velozmente da velhice. Ontem, à madrugadinha, após assistir à improvável vitória do Palmeiras sobre o América-MG na choperia, pelas semifinais da Copa do Brasil, encontrei-o meditando sobre a recente alta da gasolina, as probabilidades de ser contaminado pela covid em fila dentro e fora de ônibus; sobre a inflação, o Índice IBOVESPA, o Risco Brasil, a festa clandestina do playboy Neymar e c&a; sobre todas essas notícias que lhe chegam sem pedir licença.
De repente, este sofá 365 dias doméstico, paz e amor, aspirante aspirado, torna-se revoltoso: são os rumos do mundo a desgostá-lo monetária e tristemente. Tento acalmá-lo. Pergunto se já cansou de ouvir a infame e saborosa piada natalina: "Papai noel, você rói unha?", e papai noel responde: "Hou Hou Hou". Este sofá, menos arredio, esboça um sorriso engasgado desde o Natal, esta miragem tristemente alegre, é quando papai noel aparece, apaga a luz, e então acordamos sabendo que, na Nova Zelândia, já é 2021.
Dios te bendiga, ó miragens.