A IGREJA DO CALDEIRÃO

Ao entardecer de sábado eles começavam a chegar. Vinham da Favelinha e atravessavam a rodovia poeirenta em direção ao fogo que já ardia num buraco abaixo da trempe. Traziam seus pratos e colheres embrulhados em trouxinhas, cinco reais de carne moída uns, duas mandiocas outros, e os menos abonados uma braçada de lenha para o fogo. Algumas batatas, cebolas e cenouras. Três ovos para engrossar o caldo. Certa vez conseguiram cinco frangos que tinham passado um dia da data de validade e iriam ser jogados fora, mas ainda estavam bons para consumo.

Incontinenti, dois homens eram escalados para buscar o caldeirão no paiol. Era grande e pesado. Podia conter os quartos de um porco. Recebia imediatamente uma concha cheia de banha e os aromas de fritura começavam a se espalhar. Iriam fazer a sopa.

Organizando-se em grupinhos e conversando entre si, o povo lentamente se misturava, se separava e tornava a se juntar em novos grupos. Amizades eram feitas e renovadas. Informações circulavam. Uma ou outra linguaruda soltava uma fofoca. Os velhos se fartavam de ver e ouvir, que é a distração dos anos macróbios. As crianças circulavam entre os adultos, os olhinhos brilhantes caçando novidades. Casais abrandavam depois de uma briga. A sopa fervia e chiava, e as estrelas espiavam do céu.

Ao pé da mangueira, as cozinheiras da noite se revezavam entre o caldeirão e a mesa de pranchão montada sobre cavaletes à sombra da árvore. O time variava todo sábado. Todas tinham a chance de mostrar como se tempera um caldo em sua casa. O paladar nunca cansava.

Quando o Zé Goiano aparecia com seu violão, logo se formava a roda em torno do trovador. Só sabia modinhas antiquadas, da roça, mas quem é que precisa de mais? Com a voz adoçada de saudades, fazia os ouvintes sonhares com o amor que não tinham e esquecer um pouco as asperezas da vida.

Servidos todos de sopa, se acomodavam para comer no vasto quintal, apurados com a quentura do prato. A mesa era só para os idosos que já não podiam equilibrar a louça quente com uma mão e comer com a outra. Geralmente não sobrava; mas se sobrasse, precavidas donas de casa já tinham pronto o pote de sorvete para fazer a marmita. A sopa de sábado garantia a segurança alimentar de muita gente no domingo.

Pelas dez horas, com o fogo reduzido a tições e o caldeirão de volta ao paiol, começavam a se despedir de Felícia, a dona da casa. Alguns ganhavam uma ajuda: uma gemada para o filho com bronquite, a garrafada de erva-de-santa-maria para os vermes das crianças, um cacho de banana verde. Para a anemia, o ferro do caldeirão resolvia.

Felícia tinha o nome mais adequado que já se deu a uma criatura. Tinha sido feliz na infância, passada na mesma casa ancestral onde agora morava. Tinha sido feliz no casamento, por um quarto de século, junto ao seu adorado Ascânio. E, viúva, passara pelo luto com tranquilidade e equilíbrio, sabendo que os amores da terra se reencontram no céu. Tinha uma situação financeira estável. Dividira a herança antecipadamente, com os dois filhos e duas filhas, reservando para si uma pensão suficiente. Passava seus dias atarefada com as miudezas da casa, se deleitando na lembrança do falecido, recebendo as amigas que vinham passar uns dias, podando e transplantando suas roseiras e, é claro, esperando pelo sábado.

Ao voltar a morar na casa da infância, encontrara a Favelinha já formada numa aba de terreno de uma fazenda cujo dono lutava contra a falência. Embora houvesse espaço, construíam seus barraquinhos de compensado e lona perto uns dos outros, como a querer se proteger pela proximidade. Os moradores eram diaristas, ambulantes, salgadeiras, entregadores e lavadeiras. Não havia eletricidade nem água encanada. Poucos tinham celular. Todos recebiam Bolsa Família, cujo valor nunca fora suficiente para atravessar o mês. A escola mais próxima ficava a 12 quilômetros, e os serviços de saúde estavam do outro lado da cidade. As diaristas e lavadeiras levantavam às quatro da manhã para chegar no serviço às sete em ponto. A pé. Era uma vida para ser vivida pelos fortes.

E, no meio de tanta luta, tinham os sábados. Quatro horas inteiras para estar uns com os outros, relaxar e olhar a dança do fogo. Esses dias davam um senso de segurança que pacificava a comunidade. Os que conseguiam se mudar, por vezes, ainda apareciam para rever o pessoal. Os recém-chegados logo se adaptavam ao jeito da casa, e, trazendo novas histórias para os grupinhos, oxigenavam e revitalizavam a convivência.

Jesus não trazia consigo pães e peixes: da multidão recebeu-os, à multidão devolveu-os. Ele alimentava o corpo e a alma. Ao pé dos mais humildes, Felícia descobriu que sua religião era comungar em torno de um caldeirão. Que cozinhar e comer juntos satisfaz tanto a matéria quanto o espírito. A comunhão era verdadeira. Nenhuma igreja poderia lhes dar a saciedade física e moral dos seus sábados. E, sabendo que tudo era agradável aos olhos dos homens e de Deus, viveu seus dias restantes com alegria e devoção.

Tangará da Serra, 30/12/2020.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 30/12/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7148075
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