O menino que adorava comício
Nos anos 90, conheci um menino que não perdia um comício. Fazia sol ou chuva, em bairro pobre ou remediado, da frente liberal-conservadora ou dos comunistas, lá estava o menino próximo ao palanque.
Naquela época, podia de tudo nesse tipo de evento. Sorteio de dentadura, entrega de jogo de camisa de time de futebol, arremessos de canetas, chaveiros, isqueiros e, pasmem, cigarros. Podia também ter palhaço, dançarinas, mágicos e shows de envergadura regional ou nacional, a depender do cargo almejado ou do que fora (e para quem fora) prometido.
O rapazinho já era conhecido na vizinhança como “o menino que adorava comício”. Havia, inclusive, especulações sobre os motivos que o levavam a perder aula de educação física, mas não um comício, fosse de dia, ou, à noite. Alguns diziam que os comunistas exploravam seu trabalho infantil, posto que o menino era pago para trazer um ar leve e ameno, em meio a discursos que prometiam incendiar o país.
Aqueles que tendiam mais à esquerda não tinham dúvidas de que o menino era filho de algum figurão da terra, que desde cedo desejava fazê-lo conhecido e, assim, naturalizava sua presença até a sucessão. Quem não buscava ideologias como filtro de suas explicações atribuía a presença do menino a olho-grande e falta de bons modos, porque estaria ali para papar o máximo de prêmios e arremessos de brindes possíveis.
Naquela grande campanha eleitoral para deputados estaduais e federais, senadores, governador e presidente da república, o menino se fez presente em todos os comícios. Ficava ali, na primeira fila, imóvel, na frente do palanque. Certo dia, pude observá-lo do início ao fim dos trabalhos. Não tinha melhor forma de analisá-lo individualmente, senão enquanto parte de uma multidão.
Na primeira metade do dia, subiu ao palanque a aliança liberal-conservadora, falando-se em privatizações, saneamento fiscal e, principalmente, modernização das relações. O ponto máximo do ato político eram os arremessos de dentaduras e distribuição de marmitas, enquanto os candidatos esbravejavam que os pobres não queriam o peixe, mas a vara de pescar. O menino, embora franzino e magrinho, sequer olhava ou levantava a mão em direção aos cabos eleitorais.
Na parte da tarde, montado novo palanque do outro lado da praça, falou um candidato a deputado trabalhista, defendendo a conciliação de classes sob um estado protetor do trabalho e de bem-estar social. Nesse momento, os convidados, ouvintes e adeptos bateram palmas, chamaram por Vargas e Jango, sopraram apitos e buzinaram. O menino permaneceu parado, reto, sem esboçar desequilíbrio de qualquer ordem. Quando, ao final do seu discurso, o futuro jovem deputado distribuiu suas camisas com seu nome e número sob um desenho do Baby, da Família Dinossauro, sucesso de audiência na TV da época, o menino, assustadoramente, se colocou indiferente. Sequer esticou os braços para pegá-la.
Em seguida, fechando o comício da aliança democrático-popular, um candidato a deputado federal, comunista, inflamou o ambiente e asseverou: naquela eleição, pedia votos, mas, depois de eleito, a revolução seria no bico do fuzil e na ponta da baioneta! Seus camaradas, boa parte homens fortes porque estivadores, portando bandeiras de foice e martelo, marejaram os olhos e bradaram palavras de ordem: banqueiro ladrão, agiota da nação! O menino, ainda que já soubesse o que era fuzil, sequer demonstrou medo diante daquelas palavras musculosas. Permaneceu ali, quieto, imóvel, porém, como sempre, atento.
Depois de ter discursado o último candidato do dia, deveras intrigado com a espera e impassividade do menino, que não brigou por nenhum brinde e tampouco recebeu qualquer quantia embaixo ou atrás do palanque, me pus em sua direção. Perguntei-lhe o que fazia em todos os comícios... Mais do que isso, o que fazia imóvel em cada um deles. Ou melhor, por que ia em todos os comícios daquela campanha e, lá, permanecia atento, como se soubesse o que se discursava.
O menino, com uma voz impaciente e indignada, embora o olhar fosse triste e cansado, respondeu que ia em todos os comícios porque, sendo órfão de mãe, se afeiçoou com uma mulher e, por isso, muito queria saber: entre tantas críticas e loas, afinal de contas, por quem se candidataria a tal Constituição?