MUITO MEDO, POUCO AMOR

Rasgou o papel em pedacinhos e, fazendo uma bolinha com cada um, engoliu-os todos. Merecia.

Era uma reclamação sobre o tédio na escola. Fazendo-a, esperava consolo ou orientação. Em vez disso, os dois se voltaram contra ela. Foi chamada de inútil, ingrata, estúpida. Precisava de uma surra “para aprender”. A raiva nos rostos, nas vozes, nos gestos bruscos, despertaram o sentimento de sempre: culpa. Era necessário se punir. Então comeu o papel.

Deus estava de olho nela. Odiava-a. Sempre fazia tudo dar errado para castigá-la. Ela tentava e tentava ser uma boa menina. No dia que conseguisse, seria perdoada. Os sorrisos substituiriam as caras feias, o abraço viria em vez da rejeição, o falar seria humanizado, e ela por fim seria feliz. Mas continuava sem acertar e, por isso, os pais brigavam, era criticada ao nível de esfolamento moral, os olhos fuzilavam ódio e os rostos se contorciam de raiva.

Fazia suas tarefas domésticas todos os dias, ansiando por uma palavra boa, um comentário positivo. Mas o padrasto achava tudo mal feito e a mãe se omitia. O desânimo se instalava. Queria fugir daquilo tudo, do eterno lavar-varrer-encerar-lustrar, queria ajuda para carregar o peso da solidão. E ia fazer seu serviço com toneladas pesando no coração.

Se eu fosse uma pessoa certa eles teriam amor por mim, pensava. E tentava e tentava de novo. O centro de sua vida era agradar à mãe sempre distante. Tinha consciência de certas injustiças. Crianças com notas menores do que ela ganhavam parabéns. Crianças que se exprimiam não eram reprimidas. Crianças que erravam não eram surradas. Ela sim. Parecia que, no mundo todo, só ela não tinha um lar.

E veio a adolescência. Cresceu sem outra ideia de si a não ser que era feia, burra e inadequada. Recebia elogios sem acreditar neles. Estava sempre faminta por atenção. Se ligava facilmente a pessoas raivosas ou autoritárias e daí em diante, repetia os passos da dança que aprendera com os pais.

Assistiu à transformação do próprio corpo com incredulidade. Sabia o que significavam. O que não sabia era como podia virar moça sem ter sido criança ainda.

Tinha amigas. Mas era amizade de uma só mão e ela era a doadora. Nos ouvidos dela iam parar todas as dores reais ou imaginárias, mas sem reciprocidade. Teve um emprego. Era a funcionária mais dedicada a agradar os chefes e a menos lembrada na hora do reconhecimento. Não estranhava. Embora uma pequena voz interna, por vezes, se insurgisse contra o tratamento recebido. Mas era assim que ela era. As situações que vivia combinavam com a forma como ela via o seu estar no mundo.

O tempo passa e a fila anda, mesmo que seja a fila da tristeza. Formou-se com boas notas e casou-se com o namorado sério e exigente, que logo se revelou um marido autoritário e irritadiço. Desdobrava-se pelos caprichos dele e ia chorar sozinha a dor das críticas constantes, arrebanhando para si todas as falhas e imperfeições que ele apontava. Os anos em que tentava ser perdoada pelos pais e por Deus agora eram os anos em que lutava para se tornar aceitável aos olhos do marido.

E ele pagou toda essa dedicação do jeito clássico: apareceu com outra família. Nem por um momento ela duvidou que dera causa à afronta e, comparando-se com a nova esposa, mais uma vez chorou de tristeza por ser o que era. Tão patética. Tão indigna. Tão incapaz. Sem merecer nenhum amor.

A meia-idade encontrou-a lendo livros de autoajuda. Mas por mais que repetisse mantras do tipo “Sou feliz e realizada”, menos a situação mudava. Andou por certo tempo em igrejas. Tomou passes. Teve outros relacionamentos tóxicos. Criou gatos. Fez doações à LBV. E um dia, morreu. De doença autoimune. Lúpus. E morreu sem nunca trair a primeira educação: aquela se recebe em casa.

Tangará da Serra, 29/12/2020.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 29/12/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7146812
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