O último clichê do ano e a vagarosa metáfora criança. A visita da esperança em Mário Quintana.
Nos últimos dias que antecedem um ano novo, é comum pensar em folhas em branco, em renovar planos, eliminar acúmulos materiais ou não, e repetir promessas, metas deixadas pela metade e clichês já há muito conhecidos. O final do ano traz consigo uma autorização formal para se começar do zero, interromper a sequência apresentada pela vida e, após um breve fôlego, voltar ao ponto de partida como se nada tivesse acontecido. Gostamos da crença nos problemas resolvidos e da sensação de renovação e de esperança, mesmo quando esta já não se mostra um disponível bote salva-vidas, o que tem acontecido nos conturbados momentos atuais.
O texto mais lembrado e recitado nesse período é o poema Esperança, do escritor gaúcho Mário Quintana, tão explorado e esperado todos os anos, como visita recorrente recebida para a ceia de réveillon. Já chegamos ao décimo segundo andar e neste último mês do ano os versos se repetem e ressoam. Agora mais do que nunca, não nos resta nada além de esperar.
Segundo a definição, esperança é a possível realização daquilo que se deseja; confiança em coisa boa, ou simplesmente fé. É o que impulsiona a todos a retornar ao primeiro andar e subir degrau por degrau. A espera da cura, do emprego, da estabilização da economia, da segurança, da vacina, do respiro livre e despreocupado. Mais do nunca os clichês sustentam a fé daqueles que confiam na chegada de coisas boas e futuras.
Trata-se de espera e resiliência. O poeta da esperança não confunde espera com otimismo simplório, mas nos lembra que o mais importante é o voo, é o instinto de atirar-se de cabeça confiando na capacidade de levantar e seguir, como criança após o tombo.
A louca que aguarda durante o todo o ano pelas sirenes, reco-recos e buzinas para atirar-se suicida e confiante do alto do ano pensa e acredita (somente acredita) que após deliciar-se com o voo, será encontrada ilesa e sem nenhuma cicatriz sobre a calçada, voltando ao início, ainda criança, maior clichê de esperança e futuro abundante.
A impossível transformação tão esperada por essa louca e capaz de torná-la novamente uma menininha de olhos verdes fará com que ela lembre e mostre aos curiosos de forma bem didática e vagarosa o seu nome, que jamais pode ser esquecido e que remete à base de uma experiência nova.
É amplamente divulgado que, em uma entrevista o poeta declarou: “ O ditado diz que, enquanto há vida, há esperança. Eu digo que enquanto há esperança há vida. Porque nunca foi encontrado em nenhuma parte do mundo, num bolso de um suicida, um bilhete de loteria que fosse correr no dia seguinte”. E assim nos faz pensar sobre a vida e sobre o quanto ela é pautada em verdes planos.
A esperança personificada e desejosa do delicioso voo com destino ao chão deveria nos lembrar também que as marcas existem, que não é possível cair sem ganhar cicatrizes profundas e também que não há ano que não nos deixe na pele relevantes sinais gerados pela experiência e assim é importante saber que começar da experiência é mais bem mais fácil do que começar do zero.
O texto sempre recitado nos últimos encontros do ano com sua estética simples, leve e saborosa, em 2020, o ano da espera, mostra que os clichês são necessários aos respiros, literários ou não. Revimos filmes, reescutamos canções, refizemos planos frustrados e repetimos para nós mesmos: -Vai melhorar! – Vai passar! Temos todos um pouco de grilo saltitante e dessa louca que desce rapidamente em direção ao chão convencendo-nos de que precisamos voltar ao início e suplicando vagarosamente que tenhamos esperança.