Gavetas pessoais

Liguei a caixa de música, coloquei uma playlist em ordem aleatória, passei a primeira música, a segunda, na terceira desisti, percebi que nenhuma música se encaixava com o momento. Resolvi ficar apenas com o barulho dos goles, quando o vinho descia pela minha garganta, dos tragos e das tosses enquanto a seda queimava lentamente e a fumaça formava desenhos abstratos parecidos com os que eu fazia quando estava na quarta série (nunca fui bom em desenhar).

Era o ensejo que eu precisava, fechei os olhos e comecei um tour ao meu interior, fui naquelas gavetas que estão cheia de coisas e desde que me tornei “adulto” nunca mais tive tempo de abrir, e para minha surpresa estava a maior bagunça, tudo misturado! Amor e ódio, sonho e medo, esperança e frustração, algumas máscaras que já usei, tudo junto na mesma gaveta, logo eu que sou formado em logística, vê se pode? Sem contar, aquelas coisas pesadas que ganhamos das nossas famílias e até usamos quando somos crianças, crescemos e em algumas situações cotidianas não perdermos o hábito de usar, não jogamos fora para não sermos mal educados, mas sabemos que está tudo ultrapassado, vencido - tipo, hipocrisia, conservadorismo, homofobia, essas coisas que queremos dar lições com palavras bonitas, mas esquecemos que a verdade está nas ações e acabamos caindo em nossas intrínsecas contradições.

Separei tudo tim tim por tim tim, algumas coisas assumo que separei para jogar fora, outras, estavam difíceis de separar, estavam grudadas sentimentos e características em sua consistência, difícil de explicar, tipo alegria e tristeza, empatia e egoísmo, inveja e motivação, essas ambivalências cotidianas, sabe? Deu trabalho, mas consegui. Agora está tudo tudo como deve ser, separadinho, amor de um lado ódio do outro, felicidade numa ponta frustração na outra, coragem perto de sonho, tudo milimetricamente separado, devidamente no seu lugar. Mas tenho algo a confessar, as coisas que eu separei ainda não joguei fora, só coloquei em outra gaveta, mais longe, onde não vou frequentemente. Não consigo me desapegar do apego.

Esse trabalho de separar me deu sede, o meu paladar apelava por mais um gole de vinho, abro os olhos e vejo a fumaça dos últimos tragos embaralhadas, sem sentido, desordenadas, mas equilibradamente balanceadas, pareciam estar dançando uma valsa, quando se encontravam com o vento. Um movimento de leveza, uma harmonia precisa, afinada. Só aí eu percebi, que não é ter muito ou pouco, separar e ou organizar, o equilíbrio é o importante. Não pensei 2x, depois de mais um gole no vinho, fechei os olhos, voltei nas gavetas que tinha separado os sentimentos e características, e comecei a misturar tudo, como uma criança livre brincando no parquinho. Depois de ter feito a maior bagunça e misturado tudo o que eu tinha organizado, percebi que não tinha colocado na mistura as coisas que eu tinha separado para jogar fora, pensei se talvez eu devesse ir lá naquela parte mais distante pegar um pouco daquelas características e sentimentos para dar uma equilibrada, mas logo desisti. Decidi procurar o equilíbrio apenas daquela mistura que eu considerava essencial, caso não dê certo as gavetas separadas, estão lá cobertas com a manta do meu apego, prontas para serem abertas, usadas e misturadas.