Benditas amoras!
Juntando e ponteando os retalhos das lembranças, veio-me à mente o dono de uma mercearia, onde o meu pai comprava fiado, em caderneta. Isso, no início da década de sessenta.
Salvador era o seu nome. Um italiano alegre e alvacento, cujas maçãs do rosto eram rosadas, o que lhe conferia um ar de bondoso – e, na verdade, era! Sempre simpático, recebia a todos com cortesia.
Adorava esse passeio diário! As compras da manhã sempre foram da minha responsabilidade: os pães – sovado, filão – e o leite, em garrafas de vidro, às vezes um tablete de margarina Claybon ou Primor – dependendo do tamanho da conta, até a data vigente...
A mercearia ficava distante da minha casa uns três quilômetros, mais ou menos, o que, para mim, no frescor dos nove anos, não era nada.
Percorria a distância sem sentir, ainda ia saltitando, pinoteando – como minha mãe dizia –, o que justificava os joelhos arranhados.
Do caminho, conhecia cada palmo: a horta da avó da minha amiga Júlia, os belos jardins de algumas casas e cada flor ou cada fruto, alheios.
Quase sempre de bom humor, cantarolava o tempo todo, e tinha uma mania – que, aliás, tenho até hoje – de balbuciar cantigas, relacionadas ao que observo ou penso. É algo automático. Penso que seja coisa de quem tem um parafuso a menos (risos).
Assim, lá ia eu pelo caminho, apreciando tudo. Quando passava junto à cerca de uma das casas, onde um pé de alecrim crescia exageradamente, cantarolava: “Alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo, sem ser semeado”. Ou, então, palmilhando o calçamento: “Se essa rua, se essa rua, fosse minha…” E, assim, seguia o meu caminho, até aparecer outra coisa interessante. Pense como o meu olhar captava tudo num ângulo de quase 360 graus!
Numa das casas, havia uma amoreira que era a minha paixão! Sempre gostei de frutas vermelhas. No mês de setembro, época da frutificação, a calçada ficava repleta – haja vista o pé ficar próximo ao muro. Eu me esbaldava! Sem dúvida, essa era a minha mais demorada parada no trajeto até a mercearia.
O interessante é que tudo acontecia comigo. Sempre havia um caso para contar ao chegar em casa. Um dia, esquecia-me de trazer alguma coisa extra que minha mãe pedira – alguma mistura para o almoço. Noutros, eu me assustava com cachorros bravos, deixando escorregar e quebrar, sem querer, o litro de leite; aconteceu mais de uma vez, pois mal conseguia segurar, em minha pequena mão, o gargalo grosso do litro. Naquele tempo não existiam as sacolas de plástico de hoje; por vezes, os pães iam ao chão também. Contudo, esse deslize era mais fácil de esconder do olhar perspicaz de minha mãe.
Mas, a mais intrigante história que eu vivi foi, na verdade, apavorante!
Naquele tempo, a maior parte dos fogões era a carvão, portanto, na madrugada, o carvoeiro já passava com sua carroça, entregando os sacos de carvão. Um português, já dos seus sessenta anos, Senhor João, era o carvoeiro que passava lá em casa – um homem de rosto encardido. Ele tinha uma égua negra, linda. Mas, temperamental. Vez por outra, ela desembestava rua acima, e só se ouviam os gritos do português, xingando até a quinta geração da pobrezinha.
Quando ele terminava as entregas, deixava a égua pastando, próxima do caminho que eu fazia todos os dias. Entretanto, raramente ela estava por perto. Nem preciso dizer que morria de medo dela, né?
Certa manhã, lá ia eu, pulando e cantando, a caminho da mercearia e, juro, não sei o que me entreteve, mas, quando vi, estava de cara com a égua. Soltei tamanho grito que assustou a danada, que saiu em disparada atrás de mim.
Nunca corri tanto em minha vida! Não via ninguém na rua para me socorrer. Desesperada, fui para a calçada, na esperança de encontrar algum portão aberto e, acreditem, depois de quase morrer sem fôlego, entrei na casa da amoreira. Lá, eu tinha certeza de que abriria o portão – inúmeras vezes o abri para pegar amoras. Entrei, fechei o portão com tanta força, que a dona da casa saiu em meu socorro. Passado o susto, trouxe-me um copo com água, que bebi quase num só gole.
A égua resfolegava contra o portão, ainda agitada. Eu, toda encolhida, mal respirava. O coração parecia que ia sair pela boca.
Agradeci à senhorinha que me acolheu, esperei a égua tomar um novo rumo e, embora assustada, tive que continuar a jornada até a mercearia. Mais do que nunca, o meu olhar garimpava o entorno, com medo de que a égua voltasse.
Sinceramente, se eu já gostava de amoras, daquele dia em diante elas passaram a ter um novo gosto para mim. Além da doçura costumeira, tinham, agora, sabor de segurança, de proteção. Se, em meus devaneios pelo caminho, nunca tivesse parado ali para apreciar aqueles pequeninos frutos, não teria me valido de tão precioso abrigo. Benditas amoras!
Como é bom, voltar no tempo e reviver cada instante mágico, só meu, mas que me fazem feliz até hoje.
Juntando e ponteando os retalhos das lembranças, veio-me à mente o dono de uma mercearia, onde o meu pai comprava fiado, em caderneta. Isso, no início da década de sessenta.
Salvador era o seu nome. Um italiano alegre e alvacento, cujas maçãs do rosto eram rosadas, o que lhe conferia um ar de bondoso – e, na verdade, era! Sempre simpático, recebia a todos com cortesia.
Adorava esse passeio diário! As compras da manhã sempre foram da minha responsabilidade: os pães – sovado, filão – e o leite, em garrafas de vidro, às vezes um tablete de margarina Claybon ou Primor – dependendo do tamanho da conta, até a data vigente...
A mercearia ficava distante da minha casa uns três quilômetros, mais ou menos, o que, para mim, no frescor dos nove anos, não era nada.
Percorria a distância sem sentir, ainda ia saltitando, pinoteando – como minha mãe dizia –, o que justificava os joelhos arranhados.
Do caminho, conhecia cada palmo: a horta da avó da minha amiga Júlia, os belos jardins de algumas casas e cada flor ou cada fruto, alheios.
Quase sempre de bom humor, cantarolava o tempo todo, e tinha uma mania – que, aliás, tenho até hoje – de balbuciar cantigas, relacionadas ao que observo ou penso. É algo automático. Penso que seja coisa de quem tem um parafuso a menos (risos).
Assim, lá ia eu pelo caminho, apreciando tudo. Quando passava junto à cerca de uma das casas, onde um pé de alecrim crescia exageradamente, cantarolava: “Alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo, sem ser semeado”. Ou, então, palmilhando o calçamento: “Se essa rua, se essa rua, fosse minha…” E, assim, seguia o meu caminho, até aparecer outra coisa interessante. Pense como o meu olhar captava tudo num ângulo de quase 360 graus!
Numa das casas, havia uma amoreira que era a minha paixão! Sempre gostei de frutas vermelhas. No mês de setembro, época da frutificação, a calçada ficava repleta – haja vista o pé ficar próximo ao muro. Eu me esbaldava! Sem dúvida, essa era a minha mais demorada parada no trajeto até a mercearia.
O interessante é que tudo acontecia comigo. Sempre havia um caso para contar ao chegar em casa. Um dia, esquecia-me de trazer alguma coisa extra que minha mãe pedira – alguma mistura para o almoço. Noutros, eu me assustava com cachorros bravos, deixando escorregar e quebrar, sem querer, o litro de leite; aconteceu mais de uma vez, pois mal conseguia segurar, em minha pequena mão, o gargalo grosso do litro. Naquele tempo não existiam as sacolas de plástico de hoje; por vezes, os pães iam ao chão também. Contudo, esse deslize era mais fácil de esconder do olhar perspicaz de minha mãe.
Mas, a mais intrigante história que eu vivi foi, na verdade, apavorante!
Naquele tempo, a maior parte dos fogões era a carvão, portanto, na madrugada, o carvoeiro já passava com sua carroça, entregando os sacos de carvão. Um português, já dos seus sessenta anos, Senhor João, era o carvoeiro que passava lá em casa – um homem de rosto encardido. Ele tinha uma égua negra, linda. Mas, temperamental. Vez por outra, ela desembestava rua acima, e só se ouviam os gritos do português, xingando até a quinta geração da pobrezinha.
Quando ele terminava as entregas, deixava a égua pastando, próxima do caminho que eu fazia todos os dias. Entretanto, raramente ela estava por perto. Nem preciso dizer que morria de medo dela, né?
Certa manhã, lá ia eu, pulando e cantando, a caminho da mercearia e, juro, não sei o que me entreteve, mas, quando vi, estava de cara com a égua. Soltei tamanho grito que assustou a danada, que saiu em disparada atrás de mim.
Nunca corri tanto em minha vida! Não via ninguém na rua para me socorrer. Desesperada, fui para a calçada, na esperança de encontrar algum portão aberto e, acreditem, depois de quase morrer sem fôlego, entrei na casa da amoreira. Lá, eu tinha certeza de que abriria o portão – inúmeras vezes o abri para pegar amoras. Entrei, fechei o portão com tanta força, que a dona da casa saiu em meu socorro. Passado o susto, trouxe-me um copo com água, que bebi quase num só gole.
A égua resfolegava contra o portão, ainda agitada. Eu, toda encolhida, mal respirava. O coração parecia que ia sair pela boca.
Agradeci à senhorinha que me acolheu, esperei a égua tomar um novo rumo e, embora assustada, tive que continuar a jornada até a mercearia. Mais do que nunca, o meu olhar garimpava o entorno, com medo de que a égua voltasse.
Sinceramente, se eu já gostava de amoras, daquele dia em diante elas passaram a ter um novo gosto para mim. Além da doçura costumeira, tinham, agora, sabor de segurança, de proteção. Se, em meus devaneios pelo caminho, nunca tivesse parado ali para apreciar aqueles pequeninos frutos, não teria me valido de tão precioso abrigo. Benditas amoras!
Como é bom, voltar no tempo e reviver cada instante mágico, só meu, mas que me fazem feliz até hoje.