A Arte de Espantar Pardais
Ave tinhosa. Finalmente entendi o dito popular "manso que nem pardal de rodoviária". Atrevida, também.
O pardal é uma ave que gosta da zoeira das metrópoles. Pousa nas mesas dos restaurantes e, se o freguês se distrair, surrupia-lhe um pouco da sua ração. Invade quintais, telhados, cozinhas. Por onde passa deixa um rastro de bosta; uma gosma grudenta, que só sai depois de muito esfregar com bucha e sabão. Senti isso nas mãos. Onde tem pardais, outras espécies têm dificuldades de reprodução. Destroem ninhos alheios; atiram ovos e filhotinhos de outras espécies ao chão. São predadores vorazes e, arrisco afirmar, estão no topo da cadeia alimentar. Até o seu canto, raro, é irritante. Sinfonia de pardais, tenham dó! Perdoem-me os corações sensíveis: pardais são uma praga. Não os aceito cagando sobre a minha cabeça. Entre o telhado e o teto do meu tugúrio eles pintavam e bordavam, digo, cagavam e procriavam. Mas tudo tem um fim. Resolvi agir. Com todas as armas que disponho. Guerra é guerra!
Elaborei um plano maquiavélico: compraria uma lata de veneno spray e aplicaria nos vãos, mesmo sabendo que filhotes criavam penas nos ninhos. Melhor assim: Menos pardais sobre mim. Vão se ver comigo, deixa estar, pensei.Fui ao supermercado. Escolhi um veneno forte, com um sorriso sádico. Contei à vendedora as minhas intenções. Ela me aconselhou a não fazer isso. Acho que me tirou de cabeça, por causa de seu instinto materno. Meu coração amoleceu. Desisti do veneno.
Lembrei-me de um personagem de João Ubaldo Ribeiro, no livro O Sorriso do Lagarto: O personagem odiava tanto os pardais, que pagava um determinado valor por cada ave abatida a quem lhe trouxesse. Ali começou minha ojeriza por esta espécie. Convenhamos, a natureza produz coisa ruim, também, não é mesmo? Vai me dizer, meu caro leitor, que você ama as baratas; os pernilongos que zumbem em seu ouvido e sugam-lhe o sangue e o sono; aquelas ratazanas enormes... Então é preciso separar o joio do trigo, não é mesmo?
Penalizado com esta praga, mudei o plano: ficaria de plantão, com uma vassoura, para não permitir a entrada deles. Foram dias cansativos. Eles e elas me olhavam; eu olhava para eles e para elas, que tiveram a petulância de fazer sexo sobre o muro, bem na minha frente. Lógico que não permiti. Uai, que é isso? Ainda por cima, pornográficos! Logo a consciência, esta danada, que quando se instala não nos larga mais, cutucou-me: - Isso é fruto da repressão sexual. Você não vive pregando a liberdade sexual? Leu e aprovou O Livro do Amor, da Regina Navarro Lins? Tudo bem, de boa, façam sexo, mas não permito procriarem em meu teto. Por quê não vão para as matas? Seus preguiçosos, querem moleza, tô ligado!
Para melhorar meu conforto, peguei uma cadeira. Uma hora de pé, cansou-me as pernas. Para me distrair, comecei a ler Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Eles e elas perceberam a minha distração e alguns, ou algumas, sei lá, não sei quem é macho, quem é fêmea ( até com humanos, às vezes é difícil esta identificação) burlaram minha vigilância. Num voo rápido entraram no local, para levar alimento aos filhotes ou material de construção de ninhos. Desgraçados, vociferei. Nestas alturas havia colocado ao meu lado a garrafa de café e uma jarra d' água. Não arredaria pé. Mas precisava ir ao banheiro e aí... Quando voltava eles já tinham entrado, levado comida aos filhotes, etc. E ficavam sobre o muro, fios de poste próximo, grades. Piando, sei lá. Conversando entre si, traçando estratégias. Pensei em um estilingue. Não. Uma espingarda de chumbinhos... Fazia mira com uma espingarda imaginária. Não daria certo jogar pedras. Poderia acertar algum transeunte.
No quinto dia (Esaú e Jacó estava no fim), vencido pelo cansaço, mudei de tática: Tapar as entradas. Com quê? Isopor! Tinha muito, da embalagem dos móveis que chegara, para mobiliar a casa nova. Mãos à obra. Vedei todas as entradas. Agora poderia terminar a leitura de Esaú e Jacó, confortavelmente em minha cama. Depois de umas duas horas, entre a leitura e um cafezinho, fui conferir. O piso do quintal estava branco de bolinhas de isopor. Parecia ter caído neve. Mas não conseguiram entrar. Ouvi um piado lá dentro. Piu, piu,piu... Ah, vai morrer asfixiado, foda-se! E gritei: Vão cagar em outra freguesia! Reforcei as entradas, pressionando os isopores. Tempos depois retornei. Eles ou elas conseguiram derrubar uma veda. Ah seus desgraçados, xinguei. Tapei de novo. Lá dentro o piado do filhote.
Fiquei com pena e deixei uma entrada. Seu pio era muito forte, certamente estava no ponto de abandonar o ninho, ou com fome, ou com sede. Amanhã verei o que posso fazer, pensei e fui cuidar de outras obrigações. E refletir sobre a leitura de Esaú e Jacó. Fique tranquila, cara leitora, não farei uma resenha do livro. Era noite. Dormi.
Na manhã seguinte acordo com o barulho dos pardais. Porque pardal não canta, faz barulho. Não eram só os oito que habitavam o meu teto: Era um exército. Eles estavam mobilizados, para me enfrentar. Eu sim, no entendimento deles, era o invasor. Postaram-se estrategicamente em vários pontos. Fizeram um cerco. Eu atacava um grupo, outro vinha pelo flanco. Aí fiquei sabendo quem eram as fêmeas: Elas tentavam me atacar, irritadas. As fêmeas defendem mais suas crias. Os machos as estimulavam a trabalhar. Safados! A vassoura rodava no ar. Tropecei em um caco de telha, arrancando uma lasca no dedão. O leitor ou leitora, que torce para os pardais, deve ter adorado.
A luta continuava. Eles e elas não desistiam. Passadas umas duas horas houve uma trégua. O exército de pardais simplesmente voo para longe. Silêncio. Comecei a ler Madalena, uma novela de Cristiane Dantas.
Eles e elas que procurem outro teto. Aqui não.
"Nelson olhou bem para Madalena. Olhou como não tinha olhado até então: olhou como se fosse a primeira vez. Viu uma moça linda, forte, sonhadora..."
Mais uma vez interrompi a leitura de Madalena, e corri com a vassoura em punho, tentei acertar um pardal que bicava a veda. Ele, ou ela, sei lá, pousou sobre o portão de entrada da casa, com o bico aberto. Cansado, né? Atirei-lhe a vassoura. Quase acertei. Acertei sim, a lâmpada da entrada, que se espatifou. Espantar pardal dá trabalho. E prejuízo. Mais de uma semana. Eles não desistem. Eu também não. Terminei a leitura de Madalena e voltei à Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel, que estava parada desde o início da batalha de espantar pardais e substituída por outras leituras. Algumas no Recanto, inclusive.
Não me distraí mesmo. Também sou persistente, quando quero. Toda tarde, na hora dos pardais dormirem, estava eu lá, de plantão. Aqui vocês não dormem mais, babacas!
Parece que estou pronto pra comemorar a vitória. Mas um, agora não tenho dúvidas, é um macho. Tem uma marca branca no peito. É até bonito, notei. Insiste em permanecer na área, cantando seu canto agourento, como se convidasse as fêmeas a voltarem. Elas parecem ter desistidos, mas o macho idiota fica lá, feito bobo. Eu o espanto e ele volta. Espanto e ele volta. Vá cantar em outra freguesia macho besta, grito pra ele, com a vassoura na mão. Não percebeu, seu bobo, que as fêmeas se encantaram com outro mais inteligente, que sabe escolher local seguro? Pergunto com um sorriso de vitória. Ele voa de lá pra cá. Perdeu, mano, perdeu, digo em êxtase.
Enfim, depois de quase um mês de batalha, eles parecem mesmo derrotados. Continuam pousando sobre meu telhado e muro. Creio que houve um armistício. Não cagam mais sobre minha cabeça, nem fazem ninhos. Tudo, bem. Assim a gente se entende. Mas por medida de segurança, inspeciono diariamente o local.
Não sei porque, mas depois desta batalha me vem à memória O Adeus às Armas e Por quem os Sinos Dobram de Ernest Hemingway. Nenhuma guerra vale a pena. A vida é para ser vivida, há espaço para todas as espécies, etnias...
Mas,baratas, ratazanas e pernilongos... Tenho dúvidas! Será que servem para alguma coisa?