Feitio de Oração

"Batuque é um privilégio/

Ninguém aprende samba no colégio".

(Noel Rosa)

PARA mim o maior poeta da MPB é Chico Buarque de Holanda. É completo. Mas bebeu na fonte do Poeta da Vila, Noel Rosa.

Noel foi o cronista boêmio de uma época. Nenhum cronista se nivela às letras maravilhosas que ele compôs retratando o seu tempo. Foi um cronista de costumes, dos costumes do povo, dos anônimos, d boemia.

De forma que Chico é, por assim dizer, um afilhado de Noel Rosa. Este não teve as oportunidades daquele. E Nol viveu pouco, apenas 26 nos, avaliem se tivesse chegado aos sessenta anos pelo menos(é interessante lembrar que ele, Castro Alves e Rimbaud viveram pouco mas deixaram uma obra de vulto). Mais:enquanto Chico nasceu num lar que era um tempo da cultura, seu pai, Sérgio Buarque de Holanda (autor do clássico "Raízes do Brasil) vivia cercado pelos maiores intelectuais do país. Chico cresceu nesse meio, enquanto Noel viveu num meio diferente,acanhado, sem ligação com a cultura. Tudo bem, conseguiu chegar a faculdade (medicina) mas logo deixou e passou a vivenciar diuturnamente apenas a boemia. Outro ponto: Chico foi sempre um cara bonito, olhos verdes, amado pelas mulheres, enquanto Noel era feio, mirrado e tinha um defeito físico no queixo que o frustrava. Mas a verdade é que suas letras e músicas inspiradíssimas transmitem ainda maior emoção e verdade que as de Chico. É que Noel cantou o que viveu.

Há músicas dele que nos marcaram para sempre. Vou relembrar algumas pelas quais sou arriado os quatro pneus. Uma delas é "As Pastorinhas" (dele e João de Barro), quando estou meio depressivo bito ela na vitrola e logofico alegre: "A Estrela Dalva no céu desponta/e a lua anda tonta, com tamanho esplendor./ E as pastorinhas pra consolo da lua,/ vão cantando na rua lindos versos de amor. A outra música dele que me relembra a infância é "Com que roupa?". Dizem que ele compôs essa música quando estava em casa trancado e sua família havia escondido sua roupa para ele não ir para a farra. Um amigo chegou e chamou por ele, o poeta saiu na janela nu e perguntou: "Com que roupa eu vou para o samba que você me convidou?". Daí nasceu o samba antológico. Tem uma música dele que acho uma grande crônica. É Conversa de Botequim: "Se garçom, me faça o favor de trazer depressa,/ uma boa média que não seja requentada,/ um pão bem quente com manteiga à beça/ um guardanapo e um copo d'água bem gelada...". De vez em quando quando ouço um disparate de algum pernóstico costumo parodiar Noel: "Quem é você que não sabe o que diz./ Meu Deus do céu que palpite infeliz". Vamos a outra, esta eu adoro na voz de Maria Bethânia, acho que Noel foi inclusive precursor da Bossa Nova, trata-sede Três Apitos: "Quando o apito da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você,/ mas você anda, sem dúvida, bem zangada./ ou está interessada em fngir que não me vê./ Você que atende ao apito de uma chaminé de barro, por que anão aende ao grito da buzina do meu carro? ...". Há várias outras jóias de Noel como Pierrô Apaixonado, Filosofia, Fita Amarela, Quando o samba acabou, Dama do Cabaré. Ilustre Visita e tantos outros.

Mas, amigas e amigos, há dois sambas-canções de Noel que deviam, se fosse possível, ser entronizados numa Catedral do Samba. O primeiro é "Feitio de Oração". Ele com sentimento explica o nascimento do samba: "Quem acha vive se perdendo...". E no final mata a pau ensinando o que é o samba: "O samba na realidade,/ não vem do morro e nem da cidade/E quem suportar uma paixão/sentirá que o samba, então,/ nasce do coração". É uma oração ao samba. A outra música é a mais famosa e dolorida. Refiro-me a "Último Desejo". Ee escreveu a letra quando estava tuberculoso, em cima da cama, pouco antes de morrer. Entregou a Vadico e pediu que musicasse e, depois, mostrasse aletra a Ceci (o grande amor do poeta). Dizem que quando ela leu os primeiros versos desabou chorando demais: "Nosso amor que eu nãoesqueço/ e que teve o seu começo/Numa festa de São João/ Morre hoje sem foguete/ sem retrato e sem bilhete/sem luar e sem violão... ". O final da música é arrebatador e pungente: "Às pessoas que eu detesto/diga sempre que eu não presto/ que meu lar é um botequim/ que eu arruinei sua vida/ que eu nao mereço a comida/ que você pagou pra mim...". Ah, Ceci.

Vou encerrar lembrando um samba de Chico Buarque em que ele fala em Noel: "A Rita levou meu sorriso no sorriso dela/ E tem mais:/ Levou seu retrato, seu trapo,seu prato/ Que papel! Uma imagem de São Francisco e um bom disco de NOEL". Chico ou Noel? Que pergunta besta da gota serena: OS DOIS. E priu. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 25/12/2020
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