Nos tempos da covid-19

Para Alvaro Cesar Henriques Loureiro

Liguei antes para uma desconhecida, que me ensinou aonde ir. Parei o carro, fui ao porta-malas e peguei o volume, que pus ao ombro. A leve chuva fina me molhava um pouco a calva, mas não atingia os víveres, que eu os protegera com um plástico. Certamente dali a alguns metros, naquele beco de casas pequenas e quase iguais, Renatinho me esperava ansioso. Alguns poucos moradores me viam passar e um deles teve de conter um vira-lata desses mais incontidos. Cheguei a me desequilibrar. Susto passado, caminhada rumo ao 56, do Beco da Felicidade, onde toda uma família aguardava o sustento de alguns dias. Tomara outros tivessem antes feito a mesma caminhada. Tomara outros tenham se interessado por aquele bilhete. Renatinho já escreveria assim tão direitinho? – pensei. Com apenas seis anos? Dali a pouco, saberia.

Era 24 de dezembro de 2020. Véspera de Natal. Um Natal cheio de um vazio imenso. Pessoas morriam no mundo inteiro. Algumas nações já começavam a se vacinar contra um vírus poderoso que, diziam os médicos, tinha uma ação sistêmica sobre alguns organismos, que não resistiam. Foi um ano em que o mundo praticamente parou. Parou de medo! Um ano em que dava tristeza assistir televisão, ler jornal, navegar na internet. Um ano em que os pobres ficaram mais pobres.

Dias antes, no comecinho daquele mês de dezembro, minha caixa de correio recebera uma cartinha. Nunca me encantei muito com a figura de Papai Noel – descontruída muito cedo do meu imaginário. Mas, na cartinha, eu era chamado assim, de Papai Noel. O menino contava as agruras com a pandemia da Covid-19, as dificuldades de sua família e que, naquele ano, não queria presentes, mas uma cesta básica, pois os pais estavam desempregados e os quatro da casa passavam muitas dificuldades. Deixava o telefone celular de uma vizinha.

Eu saía muito pouco. Uma ou outra vez naquele ano, fui ao médico ou ao comércio, quando a cidade caía numa onda de mais flexibilidade. A onda verde era a de mais liberdade de transitar. Mesmo assim, exigia-se máscara, distanciamento e rigorosa assepsia das mãos. Havia períodos em que o vírus se acalmava, as pessoas se empolgavam, e o inimigo voltava, voltava todo o medo e a triste rotina de tragédias.

A cartinha ficaria à minha vista, para eu não me esquecer. Era preciso atender ao menino. Nunca fora de frequentar supermercados com listas de compras. O máximo que fizera na vida fora adquirir ocasionalmente um ou outro produto de necessidade mais urgente. Deixava para os especialistas da casa, que conheciam de preços e, portanto, sabiam comprar.

A despensa estava sortida e em casa parece que meu irmão, o provedor-mor, não sairia, bem como todos no condomínio em que morava. Lembrei-me de um primo, pequeno comerciante, que adquiria seus produtos nos atacadões da cidade. Pedi-lhe a cota do Renatinho. Essa que levava às costas, sob chuva, no Beco da Felicidade.

Chegava, enfim, ao 56, que reunia também várias casas. Na verdade, o 56 parecia um conglomerado, onde no fim havia uma oficina e nas laterais as casas, alinhadas e, aparentemente, muito dignas na sua simplicidade. Que bom! – pensei. O menino deve estar asseado, limpinho e não vai me deixar com o pesar de ter demorado.

Perguntei a um rapaz pelo Renatinho e ele gritou, uma, duas, três vezes. A casa era de fundos e descia-se uma escada para chegar até a passagem, onde a chuvinha, persistente, agora inundava a calva, embaçava meus óculos e prejudicava minha máscara. Penúrias da benevolência. Nada que impedisse pequena delonga.

- Demora muito? – perguntei ao rapaz. Ele apontou para a moça e para o menino.

– Renatinho? Você escreveu?!

O mulatinho sorriu e indicou a irmã, uma moça de uns quatorze anos, bonita, de cabelos bem cuidados e um short justo, que pegou a cesta, pôs ao ombro e subiu com o menino a escada. Mal tive tempo de dizer:

– Feliz Natal!