Os mussuns gigantes do Alacomba
Os mussuns gigantes do Alacomba
Uns pingos grossos e impertinentes fustigam as folhas do pé de jamelão que ensombra a enorme poça no final da Apa do Engenho Pequeno. Ali já é Alacomba, espaço vizinho a Tribobó, lugar famoso por suas vegetações.
A água da chuva empapa o chão mole das ruas, encharca o solo lamacento feito cena de velório, enquanto tento arrancar da lama os mussuns gigantes e robustos que a natureza me dá. As mãos que se enfiam nas galerias submersas da pequena vala natural são minhas. Sim, jamais tive medo de picada de cobra ou coisa do tipo. Criado no mato, frescura nenhuma me serviu de crescimento. Nativo, destemido e inconsequente.
As escoriações nas palmas das mãos cicatrizaram. São essas mesmas marcas do tempo que olho agora, tal qual selo de aventura e memória feliz de garoto peralta. As falanges já não são as mesmas, crescido e amadurecido me encontro, mas a narrativa recupera. Claro que sim, por isso peço vênia e mudo o tempo verbal. Abandono o presente descritivo, rumo ao pretérido prazeroso, mais interessante com vistas à narração.
A história acompanha a época em que eu capturava e vendia mul se confundem com cobras ou enguias perigosas por causa da sua aparência de serpente. No entanto, esses animais de maneira nenhuma configuram ofídeos. São peixes e, indiscutivelmente, contém sabores deliciosos. Prazeres capazes de levar o cristão ao sacrilégio. Padre Jota que o diga, comia fritinho acompanhado de licor de jenipapo, estalando a língua. Só aceitava os peixes mais robustos. Pagava bem, dinheiro certo, investi no meu futuro de leitor de romances de aventura com a graninha proveniente disso. Saudades do Padre Jota. Figuraça.
O resultado da captura dos mussuns comprados pelo pároco serviram para iniciar a minha biblioteca juvenil. Exatamente, com o dinheiro comprei o primeiro livro da coleção Vaga-lume entitulado Garra de campeão. Nome bem conveviente, pois minhas garras (unhas sujas e crescidas) constituíam ferramenta certa e capaz de vencer a pele escorregadia dos mussuns comerciáveis. Já o livro O escaravelho do diabo se juntou ao acervo da ainda incipiente biblioteca, provocando no futuro do cronista ambições de escritor. Dito e feito, olhe aí.
Que maravilha, a natureza animal servindo de base cruel a outros animais mais perversos como eu e o padre. Contudo, comerciávamos, necessário reconhecer, não existia tanto esclarecimento assim. Mas havia, importante admitir. Fingíamos ingenuidade.
Pobre de mim pescador mirim e pecador. Será que cometi crime ecológico ao pescar os tais mussuns? Se o fiz, que Deus me perdoe, porém creio que cometeria esse pecado de novo se voltasse no tempo. Era bom, muito bom.