Depoimento sobre Clarice Lispector
Certa vez um amigo me disse o seguinte: “Clarice Lispector é muito melhor contista do que romancista”. Claro, não pude concordar com ele. Conto, crônica, romance. A nossa escritora transitava por todos esses gêneros com muita facilidade. Ela se reinventava sempre, apresentava ao leitor várias faces, tornando-se inclassificável.
Em “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” Clarice nos apresenta uma escrita subjetiva, filosófica, poética. Escreve de uma maneira simbólica. Ora a gente lê pela trama, ora retirando pequenos trechos, lendo e relendo passagens.
No livro “A hora da estrela” a nossa autora é regionalista. Humana, realista, mostrando a secura do mundo em contraste com a ingenuidade de Macabea. Vejo no romance semelhanças com “Vidas secas”, do Graciliano Ramos e “O quinze”, da Rachel de Queirós.
Agora o lado contista. “A via crucis do corpo” é um livro negligenciado em relação aos outros títulos como “Laços de família” e “Felicidade clandestina”. Os contos deste livro são eróticos, despudorados, politicamente incorretos e talvez o lado menos conhecido desta cujo centenário é comemorado em 2020.
“Felicidade clandestina” talvez seja seu conto mais marcante para mim. A crueldade daquela menina filha do livreiro é, a meu ver, uma maneira de fazer literatura de forma legítima. A contista ali não teme revelar o lado egoísta de uma criança. Ela não quis criar uma personagem fofa, bonitinha’’ e muito menos escreveu o conto pra deixar ninguém feliz ou confortável.
Ainda quero ler “O lustre” e “ Água viva”.
Sempre que alguém me diz que não curte os livros dela costumo responder: “Você ainda não encontrou sua Clarice favorita”. Quanto a mim, leio e releio sempre com o mesmo entusiasmo. Seja para aprender a escrever, sobre a vida, a arte ou o mundo.