O "liberalismo" de Bolsonaro

Na sexta-feira (18/12), a Folha de S. Paulo publicou um interessante artigo na página A8. Intitulado "Liberalismo da destruição", foi escrito pela professora de sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Angela Alonso. Segundo ela, o presidente da República, Jair Bolsonaro, "é um legítimo liberal em seu apreço à autonomia dos individuos como superior ao bem-estar coletivo".

Não se trata de um panegírico ao inquilino do Palácio do Planalto e isto já é notável pelo título. Mais à frente, ela diz que Bolsonaro "é liberal ao estilo hobbesiano ao imaginar uma sociedade como guerra de todos contra todos. Escapa, contudo, da solução de o Leviatã, a criação de um Estado que zele pelos cidadãos".

Jamais vou aqui ser arrogante e desmerecer o artigo da professora de sociologia da USP. Eu gostei e concordo com muitos pontos do artigo. Penso apenas que outros podem ser objetados.

Não concordo, por exemplo, quando ela compreende o suposto apreço de Bolsonaro pela "autonomia dos individuos" como "liberalismo". Há quem tome como base o discurso dele contra a vacina obrigatória para concluir algo do tipo. Quem lê ou escuta a frase "devemos respeitar quem não queira tomar [vacina]" pode pensar que se trata de uma manifestação em defesa da liberdade individual. Sobre isso, duas contestações.

1) toda defesa da autonomia individual contra o Estado implica necessariamente em liberalismo, ainda que seja um "liberalismo da destruição"?

No livro "Como funciona o fascismo?", do professor de filosofia Jason Stanley, aprendemos que até o fascismo considerou o Estado como um "inimigo" que devia "ser substituído pela nação". Na mesma obra, lemos que os fascistas pregavam "liberdade" e "autossuficiência" em relação ao Estado.

2) o histórico de Bolsonaro nos permite supor que ele tenha algum princípio liberal de defesa do indivíduo?

Evidente que não. São inúmeras as declarações de Bolsonaro como apologista da opressão estatal contra o indivíduo. Anticomunismo exacerbado, defesa da tortura, da ditadura militar, da violência policial, entre outras barbáries do presidente, estão aí registradas.

Bolsonaro é contrário à vacina obrigatória, não porque ele é defensor das liberdades individuais (ele já defendeu violência estatal, como acabamos de ver), mas sim porque é um populista de direita que posa de "defensor do povo" contra o "establishment esquerdista" (não apenas o político, como também o científico). É o velho e batido "nós contra eles". A vacina é produto das instituições científicas (supostamente contaminadas pelo "esquerdismo") que fazem parte do "sistema", logo devem ser vistas com desconfiança.

Se dependesse dele, sequer haveria vacinação. Ele age para adquirir as vacinas porque é forçado pelas instituições e por setores da sociedade civil. As declarações contra a obrigatoriedade e até aquela aberração de "termo de responsabilidade" para quem quer se vacinar são formas que ele encontrou para conciliar o populismo de direita "antissistema/anticiência" e o cargo de presidente do "sistema". Ambiguidades.

Portanto, discordo quando a professora coloca Bolsonaro como "liberal" defensor do "mercado livre de ideias", por causa da pretensa crença na equivalência entre a opinião de negacionistas e a opinião de cientistas. Para o presidente e seus áulicos, como os cientistas foram formados por universidades supostamente dominadas pela esquerda, logo a maioria deles não teria crédito. Não é que o presidente acha que ambas opiniões devem equivaler, ele coloca a opinião científica como menos importante, afinal ele próprio é um negacionista. Basta ver a conduta dele em relação à gestão na pandemia e à cloroquina.

Teóricos da conspiração também podem se considerar como "anti-Estado". E não poderia ser diferente, pois o conspiracionismo pressupõe um "embate" entre indivíduos e "sistema", que pode ter a estrutura estatal como seu representante maior ou como fantoche de um manipulador mais poderoso. De certa forma, pode ser uma postura tosca e superficialmente "libertária", todavia utopicamente sonha-se com a destruição desse sistema, cujo caráter é essencialmente liberal.

A professora diz no artigo: "Bolsonaro [...] é um liberal da destruição [...], um demolidor das instituições". Nisso, concordamos. Mas as instituições que ele quer destruir são fundadas em cima de premissas liberais, como a tripartição dos poderes que limita os desvairos dele; os direitos humanos, civis e sociais (como o direito de ser de esquerda); a liberdade de imprensa (ele tenta intimidar jornais com chantagem econômica e é truculento com jornalistas) etc. Seus seguidores mais fiéis entendem que tais elementos da democracia liberal são "esquerdistas" ou "comunistas" que precisam ser demolidas.

Ademais, sua intimidação contra a imprensa tem o claro objetivo de impedir que opiniões críticas contra sua postura ou governo entrem no "mercado livre de ideias". Sem falar na tentativa de interferir na educação para "expurgar" o que ele entende por "doutrinação de esquerda" ou "ideologia de gênero", implicando em censura de professores. Aliás, é a crença na existência de uma hegemonia esquerdista nas escolas - e não princípios liberais - que motiva o presidente a defender que a iniciativa privada deve educar as crianças.

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De acordo com Angela, Bolsonaro faz esforços para desmontar "burocracias, órgãos, programas construídos e bem-sucedidos em vários governos". De fato, isso é verdade. Ele visa desconstruir estes mecanismos em prol do capitalismo predatório e da liberdade irresponsável.

O populismo de direita tupiniquim tem uma peculiaridade que o diferencia um pouco de outros populismos do mesmo espectro político em outras partes do mundo, como Estados Unidos e Europa.

Os ultradireitistas europeus e norte-americanos rejeitam as premissas daquilo que o filósofo Byung-Chul Han chama de "sociedade do desempenho", que tem a globalização (ou "globalismo") em seu cerne. O que a extrema-direita destes locais quer é o retorno do paradigma da sociedade disciplinar. O "esquema de defesa imunológica", como o protecionismo, serve como ferramenta para inibir fenômenos globalizantes.

Bolsonaro, por outro lado, tentou incorporar o neoliberalismo e dogmas da Escola Austríaca, o que gera mais ambivalências. Daí sua defesa da desregulamentação do capitalismo e sua postura que remete ao "individualismo egocêntrico". Porém, há setores da sociedade em que ele rejeita o fundamentalismo de mercado ou individualista, por razões corporativistas ou populistas.

Justamente por isso, não acredito que Bolsonaro deseje uma "ausência de Estado", como a professora diz, pois isso implicaria na total privatização dos serviços, incluindo aqueles que o presidente quer "proteger" por corporativismo ou por entender que pode ser usado para combater a esquerda.

Bolsonaro é supostamente contra o Estado por entender que o mesmo está sob o controle do "establishment" da esquerda: ciência, educação, saúde, leis... quase tudo estaria contaminado pelo esquerdismo, segundo ele e sua claque. Por isso ele quer destruí-las. É populismo de direita, não liberalismo.