Eu discordo

De máscara e à distância regulamentar mínima, vou acompanhando o diálogo daqueles dois transeuntes, que mal cumpriam o ritual do distanciamento e, com a face desprotegida, caminhavam na tarde fresca:

- Por mim, acabava com essa moleza de idoso andar de graça de ônibus.

O outro respondeu com um silêncio e ouviu mais:

- Tive um inquilino que tinha dinheiro, não me pagava o aluguel e ainda ficava andando de ônibus pra lá e pra cá. Não pode. Quem paga é a sociedade.

O outro interveio brevemente:

- Não seria uma exceção?

- Não. Lá no banco também, tem uns que se aposentaram e ficam andando de graça e podem pagar.

- Então você é a favor de pagamento pra quem pode pagar?

- Na pior das hipóteses, porque o certo mesmo era... Você veja, a nossa empresa aqui do bairro faliu. Quem aguenta isso?

Os dois se distanciaram e é possível que continuassem discutindo.

Lembrei de quantos vizinhos, quantos amigos se valeram ou se valem daquela gratuidade. Não os achava exploradores, não! Trabalharam a vida inteira, educaram os filhos, tiveram padecimentos, ficaram velhos. Velhos e pobres. É claro que no espírito da lei deve estar essa intenção de recompensar um pouco aqueles que deram sua cota de sacrifício pela sociedade e, agora, já sem a saúde dos tempos áureos, podem visitar parentes, amigos ou simplesmente saracotear por aí vendo paisagens e conversando com outros idosos nos bancos que lhes são reservados. Um direito! Um prêmio tão mínimo, tão pequeno! “As leis não bastam, os lírios não nascem das leis”, dizia o nosso Carlos Drummond de Andrade, mas, poeta, diga-me, aí da sua sabedoria, se a prerrogativa do ir e vir sem ônus para os velhinhos não asperge um pouco de felicidade...

Talvez haja, sim, quem não precise e se aproveite da situação. Mas deve ser algo insignificante, tão insignificante e mesquinho que certamente não compense qualquer tipo de triagem. É exceção, como disse aquele caminhante. A lei contempla a maioria, o significativo.

Mais à noite, no jornal, a âncora Ana Paula Couto quer saber do filósofo Luiz Pondé o que achava das ideias do novo ministro do Turismo, para quem, nas festividades de final de ano, poderiam ser permitidas reuniões com até trezentas pessoas. O ministro sugeria que o vírus não é lá esse bicho de sete cabeças, pois, segundo ele, duzentas e cinquenta pessoas, no governo, adoeceram e não houve vidas perdidas. Pondé condenou o raciocínio sofístico e disse que o ministro estava capitalizando a sorte. Afinal, cento e oitenta e cinco mil pessoas já faleceram. Uma tragédia!

E fiquei imaginando o ministro e o transeunte contrário à carteirada dos encanecidos, naquela andança vespertina, discutindo suas ideias para consertar nossos defeitos. Seria uma conversa sem silêncios, sem pausas meditativas, regada de concordâncias. E me imaginei, também, ali, mascarado, a distância, refletindo e dizendo comigo mesmo: - Eu discordo.