Faltava retornar à velha escola
Foi num final de ano, alguns anos atrás, que eu e meus melhores amigos Marcelo e Solange decidimos visitar a Escola Estadual Presidente Roosevelt, no bairro Menino Deus em Porto Alegre, RS, onde juntos estudamos. Saímos de lá entre 1988 ou 89, depois de cursarmos todo nosso ensino fundamental. Voltamos ali, creio eu, cerca de vinte anos depois.
Foi como embarcar numa aventura arqueológica. A escola totalmente vazia (exceto por alguns professores e funcionários), alunos em férias. Pedimos licença, como ex-alunos, para visitar as dependências, o que nos concederam. Estava tudo, tirando alguns detalhes, exatamente igual ao que ali deixamos. O saguão de entrada, a escadaria que conduzia para as salas de aula do segundo andar, a sala da biblioteca, onde eu, aluno tímido e de poucos amigos, passei tantas horas e descobri tantas histórias. Era como visitar uma cápsula do tempo...
Detalhes sutis tinham sido mantidos, como o padrão de cores azul e branco das paredes, um azul puxado para o metálico na parte superior e o branco na parte de baixo. As quadras de esportes, onde se praticava a temível Educação Física, da qual eu sempre dava um jeito de fugir e me esconder em algum lugar, estavam lá, exatamente iguais (as doze voltas das corridas que pareciam intermináveis...). Uma questão que notei foi a percepção do tamanho das coisas, sobretudo as quadras, menores do que eu lembrava. Quando fiz as cadeiras de Educação (que eu odiava) do curso de História, estudei uma teoria de Piaget sobre a percepção de tamanhos por parte das crianças. Dentre tantas bobagens, essa fazia algum sentido...
Também na parte externa alguns detalhes estavam idênticas, como a rampa em curva que conduzia ao auditório no segundo andar, em tom acre com hachuras de cimento em alto relevo. Novos prédios, muito bonitos, haviam sido construídos onde, lá por 1981, cursamos nossa primeira série e nos alfabetizamos. Na época eram simples pavilhões de madeira. Daquela época lembro de muitos colegas que me acompanharam até o final. Foi ali que conheci o Marcelo e a Solange.
Tínhamos, a princípio, uma inimizade, eu e o Marcelo, chegando ao ponto de, numa briga, ele me cravar um lápis na testa(!) e eu desmaiar. Só porque eu chamei a vó dele de bruxa velha... Tá certo, numa outra vez eu quebrei os óculos dele com um soco. Bom, foi a partir de 1985, já na 5ª série, que nossa amizade se estreitou. Fazíamos passeios pelo bairro, conversávamos sobre tudo, inclusive discos voadores, nossa paixão na época. Aos domingos o Seu Nei, pai do Marcelo e da Sol, nos levava ao Parque Marinha para brincar e passar a tarde. Fomos passando, assim, da infância à adolescência.
Do Roosevelt eu me lembro de tantos e tão dedicados professores que ajudaram na minha formação. Muito mais densa que no ensino médio, no qual frequentei uma escola técnica muito precária, onde sequer concluí o curso de eletrônica. Me marcaram, sobretudo, os professores de humanas e uma em especial, da área de ciências: Magda Aires. A Magda era totalmente irreverente, chamava a turma de algo como “bando de "xifópagos” e outros apelidos estranhos, era muito engraçada e ao mesmo tempo exigente. Tudo bem, tinha uma baita didática para ensinar. Foi minha professora nas 7ª e 8ªs séries, abordando o corpo humano (uma pré-biologia) e introdução à Química e Física. Foi ali que me apaixonei por Química. Mas já tinha sido fisgado por Vera Xavier e pela História.
Vera Xavier foi minha professora na 7ª série. É engraçado, mas a minha paixão pela História começou muito cedo. Lembro do entusiasmo com que lia as aventuras do Tio Patinhas visitando terras distantes e civilizações perdidas na revista Disney Especial. Lembro de um livrinho ilustrado que minha mãe me deu sobre a conquista dos Incas pelos espanhóis. E lembro de todas as minhas professoras de História do Roosevelt. A mais marcante, porém, foi a Vera. Uma senhora baixinha e gordinha, com um senso de humor irônico e ácido. Diante de uma bagunça generalizada costumava dizer: - Crianças, não derramem sangue! – Era muito engraçado. Entre os assuntos que ela abordou naquele ano de 1988 e que me “fisgaram” estava o processo de independência do Brasil. Ela contava com fino deboche os meandros e conchavos entre a corte de D. Pedro I e D. João VI, os valores envolvidos para que o Brasil se tornasse a única monarquia independente da metrópole portuguesa, entre tantas repúblicas hispânicas... "Meu filho (Pedro) faça a Independência antes que eles o façam.", imitava ela D. João VI... Fazia esquemas no quadro, fazia os fatos fazerem sentido. Depois da Vera, eu passei a estudar sozinho sobre guerras, descobertas, revoluções... Sentindo tal identificação com o assunto, optei por cursar a faculdade de História na UFRGS, em fins da década de 90. E é algo que vou levar para o resto da vida, uma fonte de conhecimento inesgotável, um grande fascínio. E com muitas versões diferentes...
Pra encerrar, um outro assunto que não pode ficar de fora, quando se fala do Roosevelt da década de 80 é o bullyng. Que naquela época nem tinha esse nome e muito menos era problematizado. O bullyng da minha adolescência tinha um nome: Demiã. Era um menino loirinho e descolado, cheio de amigos, boas roupas. Ele dividia os alunos em “normais” e “mangolões”. Adivinha qual eu era? Por ironia do destino, fomos amigos na 3ª série, quando pequenos. Lá pela 5ª ele começou a me perseguir. Eram deboches, humilhações públicas na frente de grupos de colegas, que reverberavam as chacotas. Várias vezes eu chorei. Mas eu tinha meus jeitos de me vingar. Fiz uma série de caricaturas da turma dele, ele mesmo figurando como o “Denis, o Pimentinha”. Guardei dentro de um livro, que inadvertidamente emprestei para alguém... que vazou as caricaturas. Que foram parar nas mãos do Demiã, lógico. Tomei a maior surra. Doeu mais no moral. O filho da puta virou advogado e mora em Miami. Deus não existe.
Enfim, ao contrário do que diz Lulu Santos em seu grande sucesso, não "faltava abandonar a velha escola", faltava era retornar a ela. A velha escola que tanto me marcou, me deu uma formação intelectual e moral, me apresentou ao Marcelo e a Solange, meus melhores amigos até hoje e me deu um norte na vida, revelando a minha paixão pela História, que me acompanhará para sempre. Cara, que história...