A dama do celular
Aguardando o término da consulta de minha filha, em uma clínica especializada da capital, deparo-me com uma situação desconfortável. Sinto-me envolvido por um estado de tensão e incômodo inesperados que me aborrecem e impedem de ler a minha mais nova aquisição literária: “Contos fantásticos no labirinto de Borges”. Coletânea de vários autores selecionada por Bráulio Tavares e editada pela Casa da Palavra.
A saleta de espera conta com algumas cadeiras e um pequeno sofá cinzento. Acomodam-se nela pais e responsáveis à espera da saída das crianças das diversas sessões terapêuticas. Irrita-me o ambiente extremamente barulhento. O cubículo reverbera com o som de uma TV fixada num canto de parede que apresenta sabe-se lá que programa num nível muitos decibels acima do suportável. Junte-se a isso o barulho incessante dos motores dos carros que trafegam na rua em frente, mais parecido com ondas gigantescas de algum maremoto atlântico ou tsunami nipônico. Chateia-me também os sons de teclas de celulares presentes que me fazem lembrar as antigas máquinas de datilografar da Remigton. As conversas das mães são estridentes e algumas delas capricham no falatório das vidas alheias.Uma senhora com ar de nobreza decadente e trajando um vestido longo coloridíssimo não desprega o celular da orelha. Calça sandálias vermelhas, os cabelos presos por uns óculos de sol no cocuruto. Teima em se fazer notada perante aquela plateia deprimente através de um discurso exagerado e teatral, com notas de cobertura radiofônica. Relata fatos acontecidos em seu ambiente de trabalho. Pelo dito parece-me uma funcionária de algum tribunal ou banca de advogados. Fala, ou melhor, brada em alta voz, descrevendo sem nenhum pudor ético ou compostura, sobre fatos que transcorrem em sua vidinha de assalariada. Revela um caso de processo legal por falta de lençóis para os pacientes em um conhecido hospital público da cidade e gesticula teatralmente para valorizar a sua retórica sensacionalista. Seria, sem sombras de dúvidas, uma atriz frustrada e em prematuro ocaso se nela houvesse alguma réstia de talento. Demonstra aos ouvintes o quanto resguarda as histórias que se passam pelo meio jurídico a que tem acesso. -Veja lá, fulana! O juiz decretou rito sumário nesse caso. A execução de tal processo em prol de tal pessoa, por causa disso e daquilo, está nessa situação! Fala como se os temas houvessem de surpreender os que ali estão. Como se diz
no jargão popular: ela é uma “amostrada”! Sinto uma certa antipatia por pessoa tão ridícula e transgressora do silêncio necessário à uma sala de espera de uma clínica de saúde. Imagino o quão insignificante ela se sinta que necessite tanto demonstrar às pessoas cenas e aspectos particulares de situações que não dizem respeito àquela salinha de aguardo.
De repente, sai de lá de dentro uma profissional que carrega uma criança e a entrega à sua mãe. A mulher diz algo à criança e é prontamente repreendida em público. – Sem trocas, mãe! Em alto e bom som e à frente de todos. -Peça a ela, mas
não prometa nada em troca, entende? Para ela não associar, entende? A genitora aquiesce em um gesto afirmativo com a cabeça. A mãe concorda e, acanhada, submete-se aos mandos daquela profissional. Eu, já revoltado com tanto barulho e impedido de saborear a minha leitura, começo a ler em voz alta, mas não tão alta que atrapalhe os outros, mas já tão alta
que me permita entender o que estou a ler. Os outros percebem a minha agonia. Difícil imaginar quanta poluição sonora desenvolve-se em tão exíguo ambiente.Tenso e intranquilo suspiro aliviado quando a dama do celular levanta-se e sai
puxando a filha pela mão. Murmuro baixinho as frases que leio. Respiro profundamente várias vezes, mas é realmente impossível ler-se alguma coisa nesse ambiente.
E eu, ao final, não li nenhum dos contos pretendidos nesta barulhenta manhã de setembro.