Carta à luz duma certa canção de Drummond
Lembrete
Se procurar bem você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.
(Drummond)
Se procurar bem você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.
(Drummond)
Não sei se acontece o mesmo contigo, mas, quando estou em horas ociosas – o que não significa estar sem fazer algo –, os pensamentos vão para lá e para cá, ora se coincidindo ora se colidindo, feito sonho depois do despertar. Em meio a estes devaneios, os poetas sempre me fazem companhia. Eles estão espalhados em minha estante e, agradavelmente, elevam minh’alma e, ou distraem ou provocam-me. Leio-os sem pretensões maiores do que as que a poesia por si mesma tem: descegar, desmudar, desvelar, despesar, sem fugir à verdade e ao real, sem confabular com sentimentalismo piegas e acres, sem florilégios à toa. Não apenas. Também redijo minhas intuições literárias, numa tentativa às vezes feliz, outra estéril, de deixar vazar o que este ócio criativo produz em mim. Drummond de Andrade, inspiração de hoje, resume bem o que digo:
Condenado a escrever fatalmente o mesmo poema
e ele não alcança perfil definitivo.
Talvez nem exista. Perseguem-me quimeras.
O problema não é inventar. É ser inventado
hora após hora e nunca ficar pronta
nossa edição convincente.
e ele não alcança perfil definitivo.
Talvez nem exista. Perseguem-me quimeras.
O problema não é inventar. É ser inventado
hora após hora e nunca ficar pronta
nossa edição convincente.
Esta é a V estrofe de Canções de alinhavo, da obra Corpo. Poema longo, lido por mim apenas uma vez, sem maiores demoras, mais desentendido que compreendido, sublinhadas as frases que mexeram comigo, provocando-me, e que agora ajudam a compor este texto – como qualquer outro, sempre incompleto. Recortar frases de um poema e usá-las arbitrariamente e desprendidas de seu contexto é deverás quase um crime. O mesmo se diga em relação a pinçar versículos bíblicos a esmo para construir teologias próprias, para justificar um deus particular. Contudo, dentro dum poema qualquer linha é poesia, seja no todo, seja na parte. E, se no conjunto seu significado é outro, no particular tem o poder de construir um mundo dentro de quem lê, feito semente que se desprende do fruto para fazer-se nova árvore.
Esta sensação de incompletude, de edição sempre por terminar de que fala Drummond, justifica o complemento nominal para sua Canção: de alinhavo. Alinhavo, figurativamente, significa arranjo, esboço, disposição prévia, uma elaboração feita às pressas. Extraindo [para mim] apenas este excerto da V estrofe, outro mundo se constitui. Acaso não é a vida esta busca por um aperfeiçoamento que nunca se conclui? Há rios no atlas que fluem contra o oceano, voltam ao fio d’água, explicam-se pelo arrependimento – outro recorte da mesma Canção. Mas o que é isto, afinal, Sr. Drummond? Rios que fluem na contramão, que voltam aos inícios ao invés de singrarem para adiante, pegadas de arrependimentos das coisas feitas de alinhavo... Compreendo: – diz o poeta – são o avesso do rio. É a história, aquela pessoal, em seu pêndulo, segurado por um fio que a cose, que a alinha por dentro, que a sustenta na frágil segurança do devir que nos balança.
Manca o joelho de alguém. Dói, por dentro, o lado esquerdo de outrem. Naquele, uma sensação estranha de dormência num membro que lhe fora amputado a tempos. Neste, a falta de força para o simples ato de respirar lhe causa pânico. Aqui, o que era adiado, mesmo sem esperanças de não necessitar um dia, agora pede sua vez. E assim seguimos, sempre com algo por fazer, por lembrar, por amar, por sofrer. Fatos e datas que carregamos e que nos findam, por assim dizer. Estes retalhos que nos emolduram mostram, com razão e poética, que A pouca ciência da vida não esclarece os fatos inexistentes, muito mais poderosos que a história do homem em fascículos. Datas, como vos desprezo em vossa arrogância de marcos de finitude – sempre usando a Canção. Por fim, tal qual o texto que está por terminar, assim este dia de hoje, o primeiro de todos os que me restam, espera por findar. Que data arrogante de finitude há nele? Não sei. E não sinto falta de nada. Canto a mesma Canção: o entardecer me basta.