O RELÓGIO DE NESTOR TANGERINI
O RELÓGIO
Nelson Marzullo Tangerini
Volta e meia releio manuscritos deixados pelo meu pai, Nestor Tangerini, como este monólogo, O Relógio, que passou por releitura minha em dezembro de 2020.
O referido monólogo, que ora publicamos, foi escrito, provavelmente, antes de 1930, uma vez que o manuscrito do autor obedece à ortografia que entrou em vigor a partir de 1931, quando o ph é substituído por f.
Além da revisão, fiz também correção quanto a pontuação, por achar que o texto não foi devidamente revisado pelo autor.
Sabemos que Nestor Tangerini foi um rigoroso e temido professor de língua portuguesa. Na Roda de poetas do Café Paris, nos anos 1920, o mestre tirava as dúvidas gramaticais dos “parisienses”, e, na década de 1930, o poeta venceu uma peleja (3 x 0), contra a extinta e pedante revista Careta.
Conhecidamente turrão, se vivo estivesse, talvez reprovasse a minha revisão.
Enfim, publicamos aqui o seu trabalho:
“Já havia muito minha esposa
me repetia que o comprasse.
Dispensa a gente tanta cousa,
não era mais que o dispensasse.
Porém, na “brecha”, era bom vê-la
à carga sempre infatigável,
porque o relógio, segundo ela,
era uma coisa indispensável.
II
Até que um dia, num bazar,
lá lho comprei e coloquei-o
dentro do quarto de deitar,
numa parede bem no meio.
Ela, porém, muito nervosa,
não conseguia adormecer
porque a cada tic..., coisa pasmosa,
fazia tac..., mesmo sem querer.
III
Quem tal fenômeno traduz!
e, em silêncio, co’ atenção
da lamparina à frouxa luz,
chegou-se a esta conclusão:
“Que lá por ser mais maneirinho
não perde nada o seu feitiço
porque o ponteiro mais curtinho
é o que faz maior serviço.
IV
Assim passou parte da noite
alerta, qual guarda de vinhas,
com relógio – atroz açoite! -,
há na parede às pancadinhas.
Ela gemina com rumor
e ao escutar-lhe as mágoas suas,
eu despertei e o mostrador
tinha o ponteiro... sobre... as duas!
V
Sim, duas horas... tudo escuro
e, ainda meio estremunhado,
afirmaria, bem seguro,
ter um ponteiro... oh, céus..., parado!
Minha mulher, porém jurara
que não parara desde as dez
e, finalmente, protestara:
estava quase a dar as três...
VI
Eu perguntei-lhe duvidoso
cheio de inveja, aparvalhado,
se o tal relógio temeroso
ao dar as três, tinha parado.
- Que não! – me disse. Eu retorqui:
Sentiste-as bem por sua vez?
Ela tornou-me: Oh! Se senti...
tenho a certeza que deu três!
VII
Resta-me, enfim – lembrança grata.
- És bem feliz, todas ouviste,
a maior foi na que me mata
e não sentir as que tu sentiste...
Assim falando, em bom cavaco,
eu enlacei-a qual serpente,
quando o relógio... que velhaco!!!
as quatro deu pausadamente...
VIII
Com voz amante e alterada:
- Sentiste, enfim? Diz ela triste.
- Senti, senti, mulher amada
- Ora, inda bem, té que sentiste!
Nada mais certo ouviria, em suma.
Adormeci mais à vontade,
marcando a mim apenas uma...
o quarto a minha f´liz metade.
IX
Que longo sono de paixão...
de delícias e de prazeres
em que eu sonhei com coração,
horas, ponteiros e mulheres...
Mas mal eu tinha adormecido
e gozava o sono com afinco,
diz ela baixo: - Amor querido,
lá senti... O que? – As cinco!
X
Depois das cinco se passaram
minutos largos e cruéis
e no relógio não soaram
nem cinco e meia e nem as seis.
Minha mulher, pobre senhora,
às seis queria forte e avara
e eu fui com o dedo e dei a hora,
porque o ponteiro, esse parara”.
Nestas linhas minhas mal traçadas linhas, revelo, então, o motivo pelo qual não incluí O Relógio no livro “Cinco sentidos”, publicado em 2020, pela Editora Autografia. Precisava penetrar surdamente no reino de suas palavras para saber o que faria com o texto.