UM NATAL DIFERENTE
As ruas estavam entupidas de gente. A multidão se acotovelava, esbarrava e esbravejava contra a falta de educação de alguns transeuntes a carregarem imensos pacotes de presentes. Alheio a tudo e a todos – a tudo olhava! Havia sorrisos em alguns. Noutros, tristezas nos olhares. Tênues e raras esperanças em uns. Todavia, as desilusões eram a tônica em outros tantos que por mim passavam. Inclui-me no rol dos desesperançados – desiludidos!
Uma chuva fina – garoa, para os paulistanos – insistia em molhar-me o rosto. Volvo o olhar e vejo uma menina. E ela era paupérrima, mas rica na beleza contida em sua tez cor de ébano. Na maltratada carapinha, a fina chuva não encontrara abrigo. E viam-se nela as gotículas a brilharem como se pérolas fossem a quererem penetrar naquele invólucro de despenteados cabelos. Pérolas não eram. Era uma tragicômica comédia de um teatro bufão, no qual todos nós fazíamos – e continuamos a fazer – parte, sem, contudo, nos preocuparmos com as desgraças que assolam o mundo, a humanidade.
Todavia, os olhos da menina brilhavam. Não era de alegria, era desejo. Desejo de comprar – ou ganhar, quem sabe? – do fictício Papai Noel, aquela linda boneca exposta na banca do insensível camelô que a ela negara o direito de, na bonequinha (fruto dos seus sonhos e desejos), tocar, ou mesmo, brincar. O papai biológico provavelmente nem sabia da existência da paupérrima filha. O fictício Papai Noel, a ela não conhecia e nunca, ao que parece, poderia conhecê-la.
Parte I:
Do furibundo camelô vem uma série de imprecações contra a menina:
- Não!... Não toque nessa boneca!... “Cai fora daqui, cai!” Dissera colérico e parvo o mercador ambulante.
Ela, porém, resoluta, não se moveu e não se deu por vencida. Mantendo as duas mãozinhas na parte posterior da cabeça, parecia querer segurá-la em uma posição de descanso ou, quiçá, impedir que o seu sonho por ali se estiolasse. E assim ficou como quem a espreguiçar estivesse. Riu um riso de deboche em resposta ao furibundo vendedor, sem se importar com as suas bravatas. Sem pegar na boneca, dela se aproximou e com ela brincou – ou imaginou-se brincando! O certo é que um sorriso meigo se fez presente no sujo rostinho, mostrando uma dentição descuidada, em resposta ao sorriso constante que há na cara da bonequinha.
Os seus olhos, momentaneamente, se desviaram e foram de encontro aos meus. E esse encontro dos nossos olhares teve a força, o impacto do choque de dois bólidos desenfreados. Teve a magnitude do ribombar dos trovões de um Terceiro Ato de Rigoletto! Ela me lança um meigo sorriso. Retribuo com um, também, afável, amigo e confiável sorriso na tentativa de amenizar o insano comportamento do camelô. Afago a sua impenetrável carapinha. A minha mão se molha nas pérolas em forma de gotículas da garoa que caía. Com passos lentos, desesperançados, ela se afasta para abrigar-se sob uma marquise. Meus olhos a acompanham. Os dela permanecem na boneca. Meu coração se compadece de tão pequenina menina a carregar tanto peso de tamanha desgraça.
Parte II:
Não era preciso enfiar a mão no bolso. Sabia, de antemão, o quanto nele havia. Eram as últimas cédulas e moedas que restaram do salário de novembro. Do esperado e sonhado décimo terceiro, dele não tínhamos notícias. As esperanças em recebê-lo ainda estavam latentes, porém, frias diante da realidade. E como ela, a esperança, é a última que morre – aguardávamos!
Resoluto, aproximei-me do camelô e a ele indaguei:
- Qual é o preço desta boneca?
-“Trinta reau, Doutou – só trinta reauzim” – dissera-me!
Por não ser um “doutou” e nem Doutor ser, ri! Mas – e sabendo que é desta massa que se faz um – Doutor ainda serei! Contudo, entabulei a conversa com o objetivo de obter um bom desconto. Depois de alguma “choradeira” – com réplicas, tréplicas e pechinchas –, consegui comprar a boneca com um bom desconto: paguei R$25,00(Vinte e cinco reais) – R$25,00 “reau”, segundo o vendedor urbano!
– Embrulhe-a para presente – ordenei! Enquanto o trêfego camelô preparava a embalagem, os meus olhos procuravam os olhares da menina. Encontro-os! Neles a tristeza era, agora, maior. Pela sua cabecinha, por certo, passavam os mais tristes pensamentos. Imaginei-a com suas lamentações: -“Ai meu Deus! A minha bonequinha está indo embora”!
Notei que as águas da chuva - agora mais intensa - se misturavam às abundantes lágrimas que dos ocelos da menina despencavam.
– Pronto “Doutou”! Aqui está o seu embrulho – dissera-me o camelô, ao mesmo tempo em que a mim entregava a encomenda! Peguei o sonho da menina e corri para a marquise. Os olhinhos da menina se desviaram para o embrulho como a querer se despedir da sua amiguinha, seu sonho.
Epílogo:
Fingindo não vê-la, dela me aproximei! De soslaio, contudo, pude ver que as tristes lágrimas bailavam, agora, com maior intensidade dentro das suas cavidades oculares e se mesclavam à chuva. Não dava para distinguir onde começavam as lágrimas dos céus com as lágrimas da menina. Com a mão esquerda peguei o seu queixinho e forcei o seu olhar para encontrar-se com o meu. Nossos olhares se encontram. Vejo que os seus olhos estão como o carmim, tamanha eram as dores neles inseridas. Com a mão direita entreguei a bonequinha para ela, enquanto dizia:
-Tome! É sua esta boneca! Pegue-a! Feliz Natal para você e sua amiguinha!
Os seus bracinhos sobraçaram o embrulho e as minhas pernas. A sua mão direita, desvencilhando-se da minha perna esquerda, pegou o meu braço. Nele, ela deu dois pequenos toques aos quais entendi serem para que me abaixasse – atendi-a! A menina, então, puxou o meu rosto de encontro ao seu e deu-me o mais delicioso de todos os beijos que já havia recebido. Em retribuição, osculei o seu sujinho rosto. As lágrimas dos nossos rostos se misturaram às lágrimas do céu. Ela não me agradeceu com palavras – não precisava! Sabia que ela não conseguiria dizer nem mesmo um “muito obrigado, moço!” As nossas lágrimas, os nossos olhares e os nossos meigos corações já se incumbiram dos agradecimentos.
Sim! Aquela pobre menina realizou o seu sonho de Natal. Quanto a mim – devo confessar – tive o maior e melhor de todos os Natais da minha vida por ter realizado o sonho de uma pobre menina.
Vi-a, serelepe, correndo na chuva. A molhada carapinha espalhava as pérolas que caíam no asfalto. O papel que há pouco embrulhava a boneca, estava jogado ao chão e era levado pela enxurrada. Tomara que ela leve para bem longe – não somente o papel – todas as tristezas e desgraças que assolam a pobre menina – pensei!
E ela, alegre, corria buscando, talvez, a sua mãe para dizer:
- Mamãe, o Papai Noel me deu esta boneca!
Uma chuva fina – garoa, para os paulistanos – insistia em molhar-me o rosto. Volvo o olhar e vejo uma menina. E ela era paupérrima, mas rica na beleza contida em sua tez cor de ébano. Na maltratada carapinha, a fina chuva não encontrara abrigo. E viam-se nela as gotículas a brilharem como se pérolas fossem a quererem penetrar naquele invólucro de despenteados cabelos. Pérolas não eram. Era uma tragicômica comédia de um teatro bufão, no qual todos nós fazíamos – e continuamos a fazer – parte, sem, contudo, nos preocuparmos com as desgraças que assolam o mundo, a humanidade.
Todavia, os olhos da menina brilhavam. Não era de alegria, era desejo. Desejo de comprar – ou ganhar, quem sabe? – do fictício Papai Noel, aquela linda boneca exposta na banca do insensível camelô que a ela negara o direito de, na bonequinha (fruto dos seus sonhos e desejos), tocar, ou mesmo, brincar. O papai biológico provavelmente nem sabia da existência da paupérrima filha. O fictício Papai Noel, a ela não conhecia e nunca, ao que parece, poderia conhecê-la.
Parte I:
Do furibundo camelô vem uma série de imprecações contra a menina:
- Não!... Não toque nessa boneca!... “Cai fora daqui, cai!” Dissera colérico e parvo o mercador ambulante.
Ela, porém, resoluta, não se moveu e não se deu por vencida. Mantendo as duas mãozinhas na parte posterior da cabeça, parecia querer segurá-la em uma posição de descanso ou, quiçá, impedir que o seu sonho por ali se estiolasse. E assim ficou como quem a espreguiçar estivesse. Riu um riso de deboche em resposta ao furibundo vendedor, sem se importar com as suas bravatas. Sem pegar na boneca, dela se aproximou e com ela brincou – ou imaginou-se brincando! O certo é que um sorriso meigo se fez presente no sujo rostinho, mostrando uma dentição descuidada, em resposta ao sorriso constante que há na cara da bonequinha.
Os seus olhos, momentaneamente, se desviaram e foram de encontro aos meus. E esse encontro dos nossos olhares teve a força, o impacto do choque de dois bólidos desenfreados. Teve a magnitude do ribombar dos trovões de um Terceiro Ato de Rigoletto! Ela me lança um meigo sorriso. Retribuo com um, também, afável, amigo e confiável sorriso na tentativa de amenizar o insano comportamento do camelô. Afago a sua impenetrável carapinha. A minha mão se molha nas pérolas em forma de gotículas da garoa que caía. Com passos lentos, desesperançados, ela se afasta para abrigar-se sob uma marquise. Meus olhos a acompanham. Os dela permanecem na boneca. Meu coração se compadece de tão pequenina menina a carregar tanto peso de tamanha desgraça.
Parte II:
Não era preciso enfiar a mão no bolso. Sabia, de antemão, o quanto nele havia. Eram as últimas cédulas e moedas que restaram do salário de novembro. Do esperado e sonhado décimo terceiro, dele não tínhamos notícias. As esperanças em recebê-lo ainda estavam latentes, porém, frias diante da realidade. E como ela, a esperança, é a última que morre – aguardávamos!
Resoluto, aproximei-me do camelô e a ele indaguei:
- Qual é o preço desta boneca?
-“Trinta reau, Doutou – só trinta reauzim” – dissera-me!
Por não ser um “doutou” e nem Doutor ser, ri! Mas – e sabendo que é desta massa que se faz um – Doutor ainda serei! Contudo, entabulei a conversa com o objetivo de obter um bom desconto. Depois de alguma “choradeira” – com réplicas, tréplicas e pechinchas –, consegui comprar a boneca com um bom desconto: paguei R$25,00(Vinte e cinco reais) – R$25,00 “reau”, segundo o vendedor urbano!
– Embrulhe-a para presente – ordenei! Enquanto o trêfego camelô preparava a embalagem, os meus olhos procuravam os olhares da menina. Encontro-os! Neles a tristeza era, agora, maior. Pela sua cabecinha, por certo, passavam os mais tristes pensamentos. Imaginei-a com suas lamentações: -“Ai meu Deus! A minha bonequinha está indo embora”!
Notei que as águas da chuva - agora mais intensa - se misturavam às abundantes lágrimas que dos ocelos da menina despencavam.
– Pronto “Doutou”! Aqui está o seu embrulho – dissera-me o camelô, ao mesmo tempo em que a mim entregava a encomenda! Peguei o sonho da menina e corri para a marquise. Os olhinhos da menina se desviaram para o embrulho como a querer se despedir da sua amiguinha, seu sonho.
Epílogo:
Fingindo não vê-la, dela me aproximei! De soslaio, contudo, pude ver que as tristes lágrimas bailavam, agora, com maior intensidade dentro das suas cavidades oculares e se mesclavam à chuva. Não dava para distinguir onde começavam as lágrimas dos céus com as lágrimas da menina. Com a mão esquerda peguei o seu queixinho e forcei o seu olhar para encontrar-se com o meu. Nossos olhares se encontram. Vejo que os seus olhos estão como o carmim, tamanha eram as dores neles inseridas. Com a mão direita entreguei a bonequinha para ela, enquanto dizia:
-Tome! É sua esta boneca! Pegue-a! Feliz Natal para você e sua amiguinha!
Os seus bracinhos sobraçaram o embrulho e as minhas pernas. A sua mão direita, desvencilhando-se da minha perna esquerda, pegou o meu braço. Nele, ela deu dois pequenos toques aos quais entendi serem para que me abaixasse – atendi-a! A menina, então, puxou o meu rosto de encontro ao seu e deu-me o mais delicioso de todos os beijos que já havia recebido. Em retribuição, osculei o seu sujinho rosto. As lágrimas dos nossos rostos se misturaram às lágrimas do céu. Ela não me agradeceu com palavras – não precisava! Sabia que ela não conseguiria dizer nem mesmo um “muito obrigado, moço!” As nossas lágrimas, os nossos olhares e os nossos meigos corações já se incumbiram dos agradecimentos.
Sim! Aquela pobre menina realizou o seu sonho de Natal. Quanto a mim – devo confessar – tive o maior e melhor de todos os Natais da minha vida por ter realizado o sonho de uma pobre menina.
Vi-a, serelepe, correndo na chuva. A molhada carapinha espalhava as pérolas que caíam no asfalto. O papel que há pouco embrulhava a boneca, estava jogado ao chão e era levado pela enxurrada. Tomara que ela leve para bem longe – não somente o papel – todas as tristezas e desgraças que assolam a pobre menina – pensei!
E ela, alegre, corria buscando, talvez, a sua mãe para dizer:
- Mamãe, o Papai Noel me deu esta boneca!
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Imagem: Google
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