Corpos de vidro
Acordo, levanto, vou à prateleira, pego um copo de vidro, ele resiste, escorrega e espatifasse no chão. Adianto a boa nova aos convivas: menos um copo de vidro no mundo! Aqui em casa, no início do ano, havia mais de dúzia, dos quais, ao longo dos últimos onze meses, dei fim à metade. Há quem pense que faço de propósito, como terapia ou mais uma de minhas manias. Não decidiram ainda. Do outro lado das paredes, uma voz ergue o tom e sugere que faço à procura da sorte, só porque diz o senso comum que quebrar copo de vidro traz boa sorte.
Eu contesto. No meu caso, quando essa ação espontânea acontece, inexiste o peso dessa máxima. Pelo contrário, a julgar as últimas experiências, tenho tido mostras de que, se advém fruto desse expediente doméstico, não me é proveitoso. Semana passada fui à gaveta do guarda-roupa à procura de caneta e, ao mexer nos tecidos, um copo de vidro surgiu e tomou o destino do chão. Um amigo meu, ao saber do acontecido, recomendou-me jogar na loteria, pois, segundo ele, era sinal de boa sorte.
Acreditando que quem não arrisca não petisca, joguei na loteria e, como esperava, não ganhei. Pior: nem um número sequer acertei. Decepcionado de todo também não estive, afinal a estatística é uma grande aliada nesses momentos. Para os números, tantos os quebradores de copos de vidro como os pacifistas têm as mesmas chances na loteria. Daí que não guardo remorsos nem de um nem de outros.
Desconheço essa crendice de que quebrar copos de vidro traz boa sorte. Aliás, aqui vai uma digressão: essa expressão "boa sorte", para mim, é pura redundância. Basta "sorte", palavra otimista; "boa" é dispensável. Ademais, do alto de meu minguado saber, "má sorte" inexiste; existe azar, tão amigo dos pobres. Enfim, voltemos ao caso em apreço. De modo que, se às vezes me ocorre de quebrar copos de vidro, é acidente acidentalmente acidental, assim como acontece de às vezes eu derramar café ou o que o valha no sofá; dar de testa com pedestre; em público entreter-se com conversas alheias; saudar desconhecido em via pública ou nas particulares.
Gosto de copos de vidro. São transparentes, longevos, sexys, em oposição aos corpos humanos, e desconheço se a máxima que os rodeia se aplica à pirex de vidro. Penso que não. Semana passada quebrei um, acidentalmente, claro, e no mesmo dia perdi cinco reais, que pus no bolso de minha bermuda; o bolso da bermuda estava furado, acidentalmente, claro. E então, para sorte de quem os achou, lá se foram meus cinco reais. A sorte parece desaprovar corpos de vidro, como se vê.