No Bar
Essa é fresquinha e se deu num desses bares da 408, próximo a Universidade de Brasília. Estávamos, eu e dois amigos, bebendo umas cervejinhas e a jogar conversa fora – tal como professa a tradição da boemia - quando um deles, o Cidoco, decidiu abrir seu caderno de desenho. Lá estavam suas obras, exercícios exaustivos de anatomia, alguns ainda em rascunho, protótipos ignorados, esboços esperando traços que lhe dessem forma. Enfim, desenhos próprios de sua lavra.
Passou a desenhar ali mesmo, à mesa do bar, qualquer coisa que lhe chamasse a atenção. E como registro daquele dia, começou por nos desenhar. Puxou um traço aqui, outro ali, e pronto: estavam concluídos os primeiros rascunhos. E mal concluíra os traços definitivos de um desenho, quando aparecera em nossa mesa um senhor, na margem dos seus cinqüenta e poucos anos, a disparar elogios ao nosso desenhista:
- Muito bom... Muito bom. São teus mesmo?
- Sim, sim – respondeu-lhe o Cidoco, com um modesto sorriso estampado no rosto.
- Pois são muito bons mesmo, viu!
- Obrigado.
O senhor, já bêbado, ficou ali parado, olhando o desenho, balbuciando palavras inaudíveis. E esforçando-se por ser simpático, disparou a falar:
- Esse aqui é esse aqui – indicando com o dedo quem era cada um que estava sendo desenhando ali na mesa - e esse aqui é esse aqui, não é mesmo?
Entre nós, não sei porque, pairava a estranha necessidade de recebê-lo com hospitalidade. Devíamos quebrar o gelo, a impessoalidade, provando que nós, brasilienses, não somos assim tão metidos à besta, quanto dizem por aí:
- Sim, sim. Exatamente. Esse sou eu e esse é ele – confirmei.
- Massa...Muito bom.
Abriu-se um silêncio entre nós. Uma verdadeira reticência. A necessidade de encontrar um ponto em comum entre nós se fazia presente. Oras! O que nos tornava diferente daquele homem, senão o fato de sermos uns trinta anos mais jovens? Ele, como que pressentido a necessidade, perguntou:
- Meu filho foi estudante de Letras daqui... Vocês também estudam aqui?
- Sim, sim. Estudamos.
- Ele desenha também. O moleque é bom...
- Massa...
Um assunto parece lhe correr a cabeça, ele pronuncia palavras desconexas:
- Antropologia... Sociologia, né?
Assentimos:
- É. É verdade.
Olha para o Cidoco, para o caderno do Cidoco, e em tom de desafio, propõe:
- Me desenha aí, rapaz. Quero ver se tu é bom mesmo.
Sem titubear, o Cidoco acende um cigarro e começa por desenhá-lo. Nesse instante, todas as atenções passam a convergir para o seu desenho. Os traços são precisos e ligeiros. O senhor, por sua vez, pede licença para tomar “as suas”, ali no balcão. Fingindo inutilmente não se importar com o desenho enquanto conversa com um outro senhor, encosta um dos braços no balcão e com o outro segura o copo. Depois, põe a mão nos bolsos; e com a finalidade de sair bonito na foto, tentar fazer poses que vão de John Wayne a James Bond, passando por James Dean e John Travolta, embora não obtivesse com isso muito sucesso.
Volta e meia, ele voltava à mesa para conferir como estava ficando o desenho:
- Quero ver, em!
Outra vez:
- Olha lá, em!
Mas seu esforço lhe valeu a generosidade do desenhista, que acrescentou em seus traços alguma coisa de galã de Hollywood:
- Muito bom. Muito bom mesmo!
Não contente em admirar sozinho o engenho do nosso amigo, o mostrou, todo orgulhoso, ao seu companheiro de copo:
- Veja aqui rapaz, olha só. Sou eu.
Voltou-se novamente para nossa mesa, e chamando o garçom, pediu uma geladinha pra nós:
- Garçom! Pr’esses três rapazes aqui!
Nesse instante de súbita empolgação e cordialidade, pensei comigo: agora sim, agora a conversa deslancha.
Ele começa:
- Rapaz, e Copacabana?
- Que é que tem? – pergunto perplexo.
- Copacabana é assim rapaz... é uma cidade... Grande. É... digamos... uma porta de entrada do Rio de Janeiro, sabe?
Nesse momento, o Dunga, o outro amigo, que ficara calado até ali, tecendo um ou outro comentário a respeito de outro bêbado, manteve-se calado, como se estivesse tentando entender o que sairia daquela conversa. Que convenhamos, até ali parecia totalmente sem futuro. Talvez ele estivesse depositando em mim, a esperança de salvar aquele diálogo e torná-lo digno de ser contado a nossos netos.
Com tal propósito, tento inutilmente por a conversa nos trilhos, quem saiba torná-la interessante, ou, no mínimo, inteligível. Mas o que tem haver Copacabana numa hora dessas? Era preciso puxar algum gancho. E foi o que fiz.
- Pois é. Copacabana fica próxima a Ipanema, num é verdade?
- Ipanema! Ô Rapaz! Pois é... Ipanema...
- É grande também, né?
- É... é grande... Enorme, né?
- É...
Mas que diabo de conversa chata! Que me importa o tamanho de Ipanema ou Copacabana! Pensei. Mas ele surpreende:
- Rapaz, e o Cartola?
- Que é que tem o Cartola?
- O Cartola, ora!
- Sim. Você gosta de Cartola, é isso que o senhor quer dizer?
- Rapaz, eu tenho mais de duzentas músicas do Cartola.
Êpa, pêra lá, a prosa agora tá ficando boa. Abre-se a perspectiva de uma conversa produtiva:
- Você tem mais de duzentas músicas do Cartola?
- Ou mais, né?
- Então o senhor deve conhecer essa: “Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre, mas o meu sorriso é por consolação, porque sei conter pra ninguém ver, o pranto do meu coração”...
- Ora senão! Conheço sim ora...
- Conhece?
- Ora! Cartola, né?
- É...
- Pois é... Cartola... “Boemia”, né?
- Não. É “Quem me vê sorrir”.
- Ah... sei...
-E o Noel Rosa, o senhor conhece?
- Ora senão!... Noel Rosa, né?
- É...
- Ué, Noel Rosa?
- Sim...
- Grande Noel!
E enquanto bebíamos cerveja e jogávamos conversa fora – tal como professa a tradição da boemia - a conversa se arrastou sem rumo e sem graça, até a desistência inevitável de uma das partes. À minha frustrada tentativa, por sua vez, restara apenas uma longínqua esperança: a de que possamos nos entender numa outra vida, quem saiba. Por que nessa, sinceramente, nem a base de cachaça tem futuro. Além do mais, espero que ninguém ouse contá-la aos meus netos. Assim sendo, já me sentirei um cara realizado.