ÀS CÂNDIDAS DA MINHA VIDA...
Eram duas irmãs. A diferença de idade entre elas era de apenas dois anos. Uma era viúva e trazia consigo uma prole grande, perpetuando a dinastia dos Lopes. A outra, nunca tinha casado em sua vida: moça velha, como se chamava antigamente.
Entretanto, nunca se separaram. Sempre a mais nova, a solteira, tinha morado com a mais velha, a que tinha sido casada. Formavam uma dupla distinta, especial. Em todos os sentidos. Uma se chamava Maria, a outra, Ana. As duas eram Cândidas. E seus nomes traziam a marca familiar dos Lopes do Itajá.
Eram orgulhosas por isso. Falavam sempre que a família delas era a mais virtuosa, a mais pura, a mais recatada. Contavam histórias para os netos, em que as lendas e os mitos deveriam ser perpetuados e, com o passar do tempo, aquilo tudo seria transformado em verdade absoluta. As famílias agem assim. A delas, também.
Convivi uma boa parte da minha vida com elas. Aprendi muito com seus ensinamentos e memorizei várias de suas histórias e, quando adulto, transformei aquilo que era fruto das histórias repassadas - dos pais e avós delas - em fantasias criadas para embalar tardes e noites onde a meninada procurava os mais velhos, sentavam-se a seus pés e ficavam a escutar histórias, onde muitas causavam medo e até pavor, mas que era como um ritual daqueles tempos.
As conheci indo deixar os recursos que elas precisavam para passar o mês. Naquele tempo não tinha essa história de aposentar gente velha. Se tivesse trabalhado, se aposentava. Se não, tinha de recorrer aos mais jovens, de preferência, os filhos. Um deles tinha ficado com essa missão. Era o que mais tinha conseguido se sobressair. Por isso, destinava todo mês a quantia necessária para mantê-las condignamente.
Eu era o encarregado de levar. Foi assim que as conheci. Minha chegada era aguardada, todos os meses com ansiedade. Recebia em troca, os carinhos das duas, a certeza das histórias contadas a noite e um pouco de música, cantaroladas, pelas duas, quando se preparavam para dormir.
Com o passar do tempo me fiz mais presente, passando a morar com as duas. Achava bom cuidar um pouco delas e elas de mim. Fazia o almoço para elas e não descuidava nunca de como deveria ser o cardápio. E elas restituíam os cuidados que eu tinha, com a defesa da palavra, sempre me protegendo das más línguas. Eram fervorosas.
Eram radicais em suas opiniões. Também não precisavam mudar. Não tinha quem mudasse. Por exemplo: gente de cor não entrava ou se entrava, ficavam cochichando entre elas, com certeza dizendo alguma coisa que se fosse dita hoje, seria motivo de processo e elas declaradas racistas. Umas figuras. O interessante é que os membros da família delas eram quase todos morenos escuros. Isso elas não enxergavam.
O ritual do dia-a-dia era sempre o mesmo: levantavam-se sempre as 06h00min da manhã e faziam sua higiene pessoal, tomavam café e vinham sentar-se, uma em cada lado, perto da porta da frente da casa. Ali ficavam até perto das onze horas. Eventualmente se levantavam e iam a algum lugar da casa. O restante do tempo era de conversa, na soleira da porta, com ela aberta, para receber o vento que vinha do norte e com isso “esfriar” o corpo para poder tomar banho. Caso contrário, não tomavam. Tinham medo de estarem com o corpo ainda “morno” da dormida e ao jogar água em cima dele, levar um “choque” e ficar com o corpo todo “esquecido”. Era todo dia a mesma coisa: isso era dito todos os dias, também.
À tarde, elas se balançavam em suas redes, sempre conversando entre elas. Eram fofoqueiras das histórias dos seus tempos de meninas, e chegavam a discutirem entre elas, quando uma delas teimava em dizer coisas que a outra discordava. Como se o tempo não tivesse passado e o que elas estavam contando não tivesse sido distorcido através das décadas, em seus pensamentos. A dormida era cedo: por volta das 20h00min.
Uma gostava de comer “uma carninha cozinhada bem molinha” já que a arcada dentária não se fazia presente. A outra gostava mesmo era de um doce de goiaba em lata. Chamava de “Guaiaba!”
Fiquei com elas até completar dezoito anos. Depois fui à busca de minhas histórias. Só as vi depois, duas vezes, vários anos depois. Uma tinha 96 anos, a outra 94. Minha avó se foi primeiro. Dois anos depois a irmã foi-se encontrar com ela. Estão juntas lá no andar de cima, tomando sol na soleira da porta de suas casas, esperando dar onze horas para ir tomarem banho e, antes, conversando entre si, talvez contando alguma história que levaram daqui, e que devem estar perpetuando lá por cima.
Eram duas irmãs. A diferença de idade entre elas era de apenas dois anos. Uma era viúva e trazia consigo uma prole grande, perpetuando a dinastia dos Lopes. A outra, nunca tinha casado em sua vida: moça velha, como se chamava antigamente.
Entretanto, nunca se separaram. Sempre a mais nova, a solteira, tinha morado com a mais velha, a que tinha sido casada. Formavam uma dupla distinta, especial. Em todos os sentidos. Uma se chamava Maria, a outra, Ana. As duas eram Cândidas. E seus nomes traziam a marca familiar dos Lopes do Itajá.
Eram orgulhosas por isso. Falavam sempre que a família delas era a mais virtuosa, a mais pura, a mais recatada. Contavam histórias para os netos, em que as lendas e os mitos deveriam ser perpetuados e, com o passar do tempo, aquilo tudo seria transformado em verdade absoluta. As famílias agem assim. A delas, também.
Convivi uma boa parte da minha vida com elas. Aprendi muito com seus ensinamentos e memorizei várias de suas histórias e, quando adulto, transformei aquilo que era fruto das histórias repassadas - dos pais e avós delas - em fantasias criadas para embalar tardes e noites onde a meninada procurava os mais velhos, sentavam-se a seus pés e ficavam a escutar histórias, onde muitas causavam medo e até pavor, mas que era como um ritual daqueles tempos.
As conheci indo deixar os recursos que elas precisavam para passar o mês. Naquele tempo não tinha essa história de aposentar gente velha. Se tivesse trabalhado, se aposentava. Se não, tinha de recorrer aos mais jovens, de preferência, os filhos. Um deles tinha ficado com essa missão. Era o que mais tinha conseguido se sobressair. Por isso, destinava todo mês a quantia necessária para mantê-las condignamente.
Eu era o encarregado de levar. Foi assim que as conheci. Minha chegada era aguardada, todos os meses com ansiedade. Recebia em troca, os carinhos das duas, a certeza das histórias contadas a noite e um pouco de música, cantaroladas, pelas duas, quando se preparavam para dormir.
Com o passar do tempo me fiz mais presente, passando a morar com as duas. Achava bom cuidar um pouco delas e elas de mim. Fazia o almoço para elas e não descuidava nunca de como deveria ser o cardápio. E elas restituíam os cuidados que eu tinha, com a defesa da palavra, sempre me protegendo das más línguas. Eram fervorosas.
Eram radicais em suas opiniões. Também não precisavam mudar. Não tinha quem mudasse. Por exemplo: gente de cor não entrava ou se entrava, ficavam cochichando entre elas, com certeza dizendo alguma coisa que se fosse dita hoje, seria motivo de processo e elas declaradas racistas. Umas figuras. O interessante é que os membros da família delas eram quase todos morenos escuros. Isso elas não enxergavam.
O ritual do dia-a-dia era sempre o mesmo: levantavam-se sempre as 06h00min da manhã e faziam sua higiene pessoal, tomavam café e vinham sentar-se, uma em cada lado, perto da porta da frente da casa. Ali ficavam até perto das onze horas. Eventualmente se levantavam e iam a algum lugar da casa. O restante do tempo era de conversa, na soleira da porta, com ela aberta, para receber o vento que vinha do norte e com isso “esfriar” o corpo para poder tomar banho. Caso contrário, não tomavam. Tinham medo de estarem com o corpo ainda “morno” da dormida e ao jogar água em cima dele, levar um “choque” e ficar com o corpo todo “esquecido”. Era todo dia a mesma coisa: isso era dito todos os dias, também.
À tarde, elas se balançavam em suas redes, sempre conversando entre elas. Eram fofoqueiras das histórias dos seus tempos de meninas, e chegavam a discutirem entre elas, quando uma delas teimava em dizer coisas que a outra discordava. Como se o tempo não tivesse passado e o que elas estavam contando não tivesse sido distorcido através das décadas, em seus pensamentos. A dormida era cedo: por volta das 20h00min.
Uma gostava de comer “uma carninha cozinhada bem molinha” já que a arcada dentária não se fazia presente. A outra gostava mesmo era de um doce de goiaba em lata. Chamava de “Guaiaba!”
Fiquei com elas até completar dezoito anos. Depois fui à busca de minhas histórias. Só as vi depois, duas vezes, vários anos depois. Uma tinha 96 anos, a outra 94. Minha avó se foi primeiro. Dois anos depois a irmã foi-se encontrar com ela. Estão juntas lá no andar de cima, tomando sol na soleira da porta de suas casas, esperando dar onze horas para ir tomarem banho e, antes, conversando entre si, talvez contando alguma história que levaram daqui, e que devem estar perpetuando lá por cima.
Obs. Imagem da internet