Prólogo em vermelho
Mais fácil contar as estrelas do céu que a variedade de tonalidades do vinho. Vermelhos, brancos ou rosé...ha se fosse tão simples assim. Conhecer o universo dessa bebida magnífica é redescobrir a vida e suas nuances. Viver é desvendar e isso exige a manutenção de um estado de alerta constante em face da vida. Caminhada cujos passos são essencialmente solitários, ainda que se caminhe acompanhado. Em verdade, sozinho não se chega a lugar nenhum além do próprio âmago.
Da caminhada guardo as recordações das grandes descobertas. Da tenra idade guardo a lembrança da transição para a democracia. Nas grandes greves de 1979 eu estava nos ombros de sindicalistas barbados. Lembro de decorar palavras de ordem para balbuciar no carro de som. Falar às pessoas é algo inerente a mim desde aqueles tempos; havia ali um professor em formação.
Algum tempo depois vivi descobertas inesquecíveis: entrei no estádio do Morumbi e senti meu peito bater descompassado a cada toque de bola. O estádio era tão mágico quanto uma sala de cinema. Sempre fui ruim de bola, mas recentemente me deram certificado de crítico de cinema para compensar.
Anos depois conheci a paixão da fé Católica, e por muito pouco não abracei o celibato. Mas foi esse justamente o ponto que me traiu. O celibato e eu não nascemos um para o outro. Há tanta beleza no amor carnal que a vocação não resistiu...ufa...
A juventude é a idade de ouro da descoberta. Descobri a combatividade além da política. Nos ringues e tatames cerrei as sobrancelhas. Rodei o mundo trocando golpes e cultivando amigos. Amigos, eu os guardo em todos os cantos de Gaia.
Também por querer lutar a vida me fez advogado. Lutei combates duros. O ABC de São Paulo bem o sabe. Guardo a terna lembrança de Wagner Lino, amigo dos bancos escolares, companheiro da vida, levado pela doença maldita que nos come aos poucos. Lutei por pessoas e coisas. Advoguei a diferentes movimentos sociais. Advoguei até para árvores – um dia explicarei isso melhor, prometo.
São tantas as lembranças marcantes que guardo, porém uma se destaca entre elas: o primeiro sorriso que Maria Laura abriu para mim. Não havia sido um espasmo, nem um sorriso perdido em seus singelos pensamentos. Ela fixou o olhar nos meus olhos e sorriu para mim. Para mim! Nesse mundo de descobertas minha pequena flor havia descoberto ao pai. No mesmo momento eu descobri o amor. Sem dúvidas, Paula, a baixinha dos olhos verdes, havia me dado a oportunidade da maior das descobertas. Ignoto leitor, se continuar a escrever sobre minha filha ficaremos aqui por muitas horas ainda. Retomemos.
Quando descobri o vinho um universo de magnífico se abriu para mim. Não sou enólogo nem sommelier. Sou amante. A mim, a palavra “amante” nunca teve trouxe conotação negativa. Sempre ponderei que amante é quem guarda amor. E tudo que você precisa é amor, na letra dos quatro carinhas de liverpool. Em verdade, amor e uma tacinha de vinho, certo? Por todos os lados há amor. Tão múltiplos quanto os buquês dos vinhos que provei mundo afora. Afrodisíaco da alma, alguém disse com precisão. Amei tanto que meu coração precisou ser remendado por médicos e um deles até me receitou vinho – não na quantidade que eu gostaria, lamentavelmente.
O que há de comum em todas as lembranças e descobertas que mencionei? Há um elo entre o brasão do clube de futebol, a paixão política, o sangue Dele derramado, a luz do parto, os lábios das mulheres amadas e os melhores vinhos que provei: o vermelho. Eu não escondo a predileção pela cor.
Provei regionais, varietais, cortes, espumantes, tantas castas diferentes e tantas alquimias de uvas, e tantos formatos de lágrimas que se torna impossível apontar um como predileto. Não existem dois vinhos iguais, as vezes até mesmo quando se busca o mesmo rótulo. Não existem dois beijos iguais, até mesmo quando vêm dos mesmos lábios, nuns dias apaixonados, noutros protocolares.
Quando se vive algum tempo na Argentina é possível perceber uma nova dimensão do vinho: sua história. O mesmo acontece em França, Portugal, Espanha. Quando eu vi, no Porto, a complexidade de confecção de um tawny, nunca mais provei o ruby, até então meu predileto. Existe algo por trás de cada vinho. Não se bebe apenas o líquido, mas as mãos de seus artífices, as tradições, o legado das gerações passadas. Vinho é ancestralidade e nela se reinventa o culto ao belo. Há muita mais que uvas fermentadas numa garrafa, assim como há dentro de nós muito mais dos que os olhos podem ver. Saramago asseverou que há algo entre nós que não tem nome, e que se algo é o que somos. Em cada garrafa há algo indescritível. O vinho é o resgate da magia que o capitalismo devorou. Por obvio, o sistema cooptou o vinho também, mas há outros ambientes pra tratar desse ponto. A preguiça é maior que a crítica hoje.
Ainda que menos profunda, essa dimensão, quase mágica, do vinho, existe também em terras pátrias. Há improváveis bons vinhos nordestinos, brancos estupendos no sul do Brasil, e até rotas do vinho, como no interior de São Paulo. Eu tomo os vinhos de São Paulo com orgulho, pois, ainda que simples vinhos de mesa, muitas dessas uvas eu já colhi e pisei. Bebo, pois, um pouco da minha própria história.
Nessa sucessão de descobertas as harmonizações mais diversas eu busquei. Além das “carnes vermelhas” e “massas” e tal. Tenho o cinema como outra paixão e lembro bem da harmonização entre filmes e vinhos. Provei um vinho com sabor do suor do Rambo. Eu juro ser verdade. Participei de outra com vinhos voltados ao paladar LGBT. Não vejo, porém, relação mais harmônica que vinho e poesia. Poesia é o vinho em palavras.
Diálogos com o vinho. Por vezes trocamos palavras regados a vinho. Em outras o papo se dá com o próprio vinho, companheiro da solidão que nos é intransponível. Há um tempo para sorrir entre taças suaves e chorar em goles amargos. Cada poema remete a um vinho, seja pela memória, pela licença poética ou mesmo pela simples harmonização. Poemas há que reclamam somente um tipo de vinho. Impossível lê-los degustando outro.
Queria eu harmonizar a vida num laço infinito: amor, cinema, gastronomia, política, poesia. Tudo rimando com tudo em rimas poéticas preciosas e versos dodecassílabos. Meu leitor, o que me falta em talento me sobra em inspiração, daí meu convite ousado. Eu sou vermelho de corpo e tinto de alma; harmonizo bem com quem guarda apreço pelas letras. Venha comigo degustar cada palavra e ler cada nota do vinho.