NA INTIMIDADE DO TEMPO
Já há alguns anos ela nitidamente vem desacelerando a vida.
Nascida numa cidadezinha longínqua, nunca entendera muito dessas coisas de cidade grande: pressa, compromissos, carros, ônibus, metro, luzes, celulares que não param, shoppings , trânsito, buzinas, elevadores, escadas rolantes...
Sua vida, embora acontecesse numa encantadora casinha urbana, como se fosse recanto de bonecas, se dera totalmente nos hábitos do campo, desde o coar dum café à beira da lenha a enrolar e fritar bolinhos de chuva até cultivar samambaias em xaxins dependurados pelos caminhos.
Eu gostava de vê-la varrendo as folhas da calçada ou quando, encantada com o novo presente, ela vinha com uma diferente mudinha de flores que encontrara na caminhada.
"dessa ninguém tem"-me dizia animada.
Veio dum tempo em que sedução era poder mostrar ou enxergar os calcanhares das moças no "footing" da pequena cidade, sob o badalar das dezoito horas daquele mesmo sino que ainda hoje dobra nas missas aos domingos.
Consta também, a despeito dos seus quase noventa e sete anos, que nunca teve um só namorado.
Veio dum tempo em que beijar parecia pecado, e como sempre é, alguém deveria-afinal!- trabalhar duro nos afazeres das casa para cuidar de todos de algumas gerações.
O tempo passou e quase todos já se foram, de corpo.
Alguns se foram de alma.
Sua sentença maior foi se mudar para cidade grande depois de noventa e um anos de vida verdadeira no observatório do seu jardim, construído flor a flor durante uma vida toda.
Benção é quando a vida ainda não nos dá a nítida noção do que será só saudade...
Hoje, já não ouve o som dos passarinhos mas vez ou outra se encanta com seu voo espalhafatoso na sacada do seu apartamento, como se fosse uma visita feita dos céus para bebericar das suas flores; bem ali, quando num escape da memória, ainda reconhece seus velhos antúrios, herança de sua mãe, flores que se mudaram com ela para a cidade grande e que florescem com belo e mesmo viço como se não houvesse tempo decorrido .
Nessa vida nada é nosso, tudo só nos é momentaneamente emprestado.
Às vezes, quando conversamos, percebo que foi com ela que aprendi que esquecer também pode ser uma benção.
Mas quando me vê, mesmo paramentada frente a uma pandemia que jamais entenderia, ela ainda me abre um largo sorriso...que sinto como um abraço no coração.
Há dias atrás sentiu uma dor no abdômen e precisou dum médico.
No exato momento em que a mão a examinar lhe tocou a pele ela gentilmente verbalizou:
"isso é muita intimidade, não acha?"