UM BUSTO DE ARBUSTO BASTA
No meio das árvores e plantas do terreno adjacente ao estacionamento, destaca-se aquele arbusto. Quase nada. Mero montículo de ramos e folhas, apoiados em seu miúdo tronco. Não obstante, o danado se destaca na paisagem e prende a atenção de quem o vê.
Convém esclarecer que essa atenção é preguiçosa, condizente com a tarde arrastada de um dia qualquer.
Por falta de alternativa, quem sabe, o motorista aguarda alguém no veículo de forma pachorrenta. Nem a música do rádio o desperta de seu torpor.
Passeava o olhar pesado da entediante espera pelas árvores e arbustos até enxergar o espécime em questão, no qual mergulhou como se mar fosse. Mar? Em Brasília? Só em sonho! Pode-se argumentar que mar de lama não faltaria, mas não vem ao caso. O arbusto nada tem com isso e seria injusto com esse personagem central incorrer em desvios da trama que ele parece inspirar ao observador.
Pois é. Lá estava o pobre arbusto, certamente insignificante no meio de tanto verde, mas capaz de despertar o interesse das divagações sonolentas. É bom divagar. Divagar... Também se vai ao longe (só que mais rápido).
O que tem de especial? O motorista hesita, sem encontrar o porquê de imediato. A atenção faz-se acompanhar necessariamente da reflexão.
Não conta com flores, atrativas por excelência. Sua folhagem tampouco se reveste de aspecto insólito. As folhas não são grandes, embora a distância possa enganar o observador atento. Parecem, em todo caso, situar-se mais próximo de folhas pequenas, adequadas à dimensão da planta. O formato também se afigura comum, do tipo que qualquer criança desenharia caso convidada a fazê-lo.
Verde escuro? Verde claro? Mais fidedigno definir sua coloração como verde... folha.
Querendo cansar de encontrar definições, a mente ameaça deixar o arbusto de lado e buscar outro ponto de interesse. Inútil pretensão! Qual amante que pretende desdenhar a amada, a mente contorce-se, tenta esquivar-se, mas volta ao alvo de seus devaneios.
À falta de melhor razão ou justificativa, eis que de súbito a fixação pela planta encontra seu motivo. O arbusto assemelha-se a um busto. Sim, senhor! Monumental achado! Já se estabelece bom começo. Fruto da meticulosa reflexão ou da pura imaginação, o que importa? Um busto de arbusto é o bastante para animar a continuidade das divagações.
Um busto! De homem ou de mulher? Talvez seja mais fácil optar pelo primeiro. A mente, todavia, decide esmerar-se em criatividade e luta para identificar traços de feminilidade. Considera que bustos masculinos se mostram demasiado solenes, quando não metidos e abestalhados de tanta imponência. Bustos femininos revestem-se de maior graciosidade, de maior leveza, em linha geral, propendendo a evocar sentimentos mais amenos, ou mesmo românticos. Divagar é buscar o romantismo, no fundo (ou no raso?).
Vem à mente, contudo, exceções a essa “regra”: uma ou outra estátua feminina de passado autoritário ou mesmo cruel. O pequeno monumento de folhas não traduz crueldade, por mais malvada possa mostrar-se a mente humana em suas elucubrações. Surge, então, a fórmula perfeita para conciliar as interpretações titubeantes. Tratar-se-ia de busto à Natureza, neutro, singelo e aprazível. Conclusão mais natural, impossível. Além disso, coerente com a letargia da prolongada espera no estacionamento e com as possibilidades de tema de transcendência apenas relativa, a bem da verdade.
Antes de melhor refletir sobre a multiplicidade de monumentos, grandiosos e singelos, a que faz jus a Natureza, o motorista tem seu matutar interrompido pelo ruído incômodo do voo de pombos. Gostaria de dar um basta a essas aves bestas, que maculam, com suas bostas, o pequeno busto, em atitude de baita desrespeito.
Reflexões tendem a gerar revolta, isso não chega a ser novidade. Mesmo um simples arbusto também basta para produzir repentina indignação, por mais bucólico e pacífico possa parecer o ambiente em que se encontra.
O observador resigna-se, entretanto, em reconhecer sua incapacidade de prover a necessária segurança à plantinha, até porque chega o alguém que aguardava e trata de pôr o motor em marcha.
O arbusto lá permanece, qual monumental enigma a desafiar a mente pachorrenta que se vai. Quem sabe quantas histórias poderia haver suscitado? Questão de aguardar uma futura estacionada e retomar as reflexões com renovada preguiça.
Junho 2020.