O bêbado
 
     Em seu desvario, o pé calejado não precisa de calçado para enfrentar o asfalto frio, molhado. O horizonte é mero cinza claro envolvido pela escuridão que vai apagando mais um dia atípico na capital do vale, e ascendendo janelas, postes e os enfeites de fim de primavera.
     Ele louva a vida que o destino lhe trouxe ou então sabe que sua sina é apenas fruto da árvore que ele mesmo cultivou. – Por gentileza, começa ele em sua gentil estratégia ensaiada, o senhor teria, de repente, só umas moedinhas pra ajudar? Só umas moedinhas?
     Sujismundo e barbudo, a ausência de uns dentes e a craca nos restantes recendem ainda a um bafo que logo lhe trai o segredo que ingenuamente quer esconder. Coitado: essa é a palavra que certamente muitos devem ter proferido, negando até mesmo abrir as janelas de suas confortáveis SUV’s.
   Adiante, nos degraus da entrada de uma comunidade cristã, o companheiro sentado em um cobertor maltrapilho que será também colchão e casa na noite úmida apenas reforça o paradoxo do homem na terra, do homem a quem foi dado, para seu usufruto, um jardim com árvores frutíferas e animais variados.
     Mas o paradoxo material, pensei, talvez seja secundário; talvez não se mantenha diante do outro paradoxo: o da normalidade. Quem é “normal” nessa cena?
     Os homens do lado de cá dos vidros não abrem mão de conquistar justamente aquilo que poderão ostentar; de adquirir o produto veloz da tecnologia; de fruir do reino das caras essências e aromas; de trajar-se com o tecido-mais-caro-só-por-causa-do-nome-da-etiqueta; de acumular os últimos modismos eletrônicos, enfim, de perseguir tenazmente a meta, fazer circular os valores da bolsa onde colocaram seu coração, sua alma. Mas o que perseguem volta-se contra eles mesmos como um fantasma que deixou algo irresoluto em sua encarnação, e que, se não lhes tomar também a própria encarnação, lhes quitará provavelmente o bom sono e a tranquilidade de quem recusa as máscaras.
     Do lado de lá, é a sobriedade que talvez tire a sensatez dos momentos embriagados. Afinal, quando os olhos estão úmidos e vermelhos, o corpo está quente, preparado para a noite; a percepção amortecida não se importa com a competição; o amanhã não preocupa, pois, o que há a perder? Só quem tem algo se preocupa com sua perda...
     Do lado de lá, os companheiros dividem: uma mísera fatia de pão é partida; o agasalho é comum; o cão se achega, se aquece e também aquece aos que se achega; não há espelhos reveladores; não se rejeita o cheiro alheio...
     Do lado de lá, há sorriso e alegria; há afeto; problemas deixam de ser problemáticos; a ofensa é perdoada e o abraço concedido; quando se quer chorar, se chora e pronto.
     Com a imaginação indo assim, de um lado a outro, experimentando mentalmente cada lugar, quem têm olhos para ouvir e ouvidos para ver certamente se questionará: onde está a felicidade – onde o não-ter leva à ilusão de que nada mais importa e, portanto, nem se tenta mais reunir forças para deixar de brindar todas as noites que chegam; ou onde o querer-ter leva à ilusão de que tantas coisas importam e, portanto, se tenta juntar todas as forças para nunca perder um só brinde em todas as noites que chegam?
     Deve haver mais. Com certeza deve haver mais um lado.

6.11.2020