Jair do baixo clero x Jair antissistema

Saiu n'O Globo de hoje (04/12): "Na ofensiva para eleger aliados como presidentes da Câmara e do Senado, o governo Jair Bolsonaro costura abrir espaços em ministérios e em cargos estratégicos para que congressistas apoiem os candidatos do Palácio do Planalto nas disputas em 1º de fevereiro do ano que vem — a principal meta é derrotar o atual detentor do posto na Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)."

A notícia serve como base para refletir acerca das ambiguidades do presidente. Jair Bolsonaro se vendeu na campanha eleitoral de 2018 como "antissistema". Parte do eleitorado crédulo nesta fantasia confiou que o "mito" fosse acabar com a corrupção, inaugurando uma "nova era", mediante a "restauração da moralidade".

O que se viu depois foi o contrário. Logo vieram à tona as denúncias contra o filho dele, Flávio; acusação de tentativa de interferência na Polícia Federal para barrar investigações contra o próprio Flávio; e a relação do Clã Bolsonaro com funcionários fantasmas, milicianos, disseminação de fake news e prática de peculato. Tudo isso deixou a imagem do presidente da República bem "rachadinha" para a população.

Como Bolsonaro conseguiu convencer milhões de eleitores de que se tratava de um "outsider" ou "antissistema", quando bastava uma simples pesquisa para constatar que ele nunca passou de um parlamentar do baixo clero e de atuação medíocre e irrelevante por quase 30 anos no Congresso, é um assunto que inspira estudos de ciência política, sociologia, filosofia, teoria da comunicação, antropologia... Aqui, nos interessa descrever brevemente como este simulacro foi formado.

A retórica antissistema naturalmente é vista como "radical". Bolsonaro sempre foi visto como extremista de direita por conta de discursos homofóbicos, racistas, misóginos, antidemocráticos, anticomunista e de diatribes demagógicas (e seletivas) contra a criminalidade e a corrupção. Desta postura se abstrai um padrão reacionário que visa romper com a ordem democrática-liberal "para trás". O presidente tem a Ditadura Militar (1964-1985), em especial o período Médici (ou coisa pior), como modelo ideal de regime político.

Até 2014, os partidos mais competitivos (PT e PSDB) nas eleições presidenciais estavam mais próximos ao "centro". Eram (e ainda são) partidos que faziam alianças para conseguir governabilidade (adeptos do "toma lá da cá") e que estavam desgastados por denúncias de corrupção de seus respectivos importantes membros partidários. Ambos tinham discursos moderados. E juntos somam quase 22 anos de poder, o que os colocavam como as "caras" do "sistema" ou do establishment.

Bolsonaro, com discurso ultradireitista, populista e demagógico, apareceu como "antissistema", porque sua postura destoou assaz do petismo, principalmente, e do tucanismo. Era algo que fugia do convencional político brasileiro.

Contradições

Desde antes de chegar ao poder, as contradições do populismo bolsonarista já eram notáveis. Em 1999, Bolsonaro disse em entrevista que se fosse eleito fecharia o Congresso Nacional. Quem tava dizendo isso era o parlamentar que desde 1991 não fez outra coisa senão ganhar muito dinheiro... na Câmara Federal!

Passou anos discursando contra a corrupção petista, enquanto fazia parte do Partido Progressista (PP), de Paulo Maluf, partido então aliado do PT, e que também saqueou a Petrobrás. Não vamos esquecer da ligação dele e dos filhos com esquemas de rachadinhas, funcionários fantasmas, milicianos... que não chamavam muita atenção por serem consideradas "pequenas" em comparação com escândalos tonitruantes.

Quando se elegeu, as contradições passaram a ser notadas por apoiadores (exceto os séquitos mais fiéis, é claro). Com ele ocupando o mais importante cargo da República, não tinha mais como esconder.

Qualquer pessoa minimamente informada sobre política sabe: Bolsonaro na verdade nunca foi "outsider".

Ao se tornar presidente, ficou escancarado que o político "antissistema" passa, inevitavelmente, a fazer parte do sistema. Ou ele cumpre os desvairos dos seguidores e dele próprio e "muda" o sistema ou se adequa. E Bolsonaro foi forçado a escolher a segunda opção por ser incapaz de fazer a primeira (o que não é surpresa alguma). Quando começaram a surgir rumores de impeachment, o que ele fez? Voltou às origens, correu para o colo do "Centrão (sic)".

A reportagem d'O Globo mostra o quanto ele está disposto a distribuir cargos com intuito de vencer as eleições para mesas do Congresso - ele quer, principalmente, derrotar Rodrigo Maia na eleição para presidência da Câmara. O "toma lá da cá" é uma prática que ele condenou na campanha eleitoral e que fortaleceu a ilusão de "antissistema". Mas agora nota-se que ele está mesmo adequado ao "sistema", como na verdade sempre esteve.

Quando era um mero deputado federal de relevância pífia, Bolsonaro nunca precisou se esforçar para conciliar a retórica de populista de direita com suas práticas de "político profissional" do baixo clero. Mas ao virar presidente, a coisa se complica. Há maior visibilidade e a função do presidente tem muito mais impacto político e social do que um único deputado. O que torna as contradições muito mais acentuadas.