PINTANDO O CHÃO DE CURITIBA


A provinciana Curitiba, não tão pequenina, mas bastante acabrunhada, se parecia muito com nossas heroicas imigrantes italianas, as verdureiras de Santa Felicidade, tão incansáveis nas carroças e imbatíveis no radite, mas cheias de timidez nas suas saias maria-mijona e em seus dentes faltantes.
Na década de 1980, alavancada por um gênio e sua criativa equipe, Curitiba sofreu uma súbita e feliz mudança, onde até o tempo pesteado resolveu colaborar. Nas manhãs de sábado, minha mulher e eu pegávamos nossos filhos e os levávamos até a Rua XV, onde já estava estendido um interminável rolo de papel branco com centenas de galões de tinta e pincéis, no aguardo da chegada da entusiasmada gurizada e seus papais.
Nas calmas manhãs de domingo, íamos tomar uma garapa gelada no Largo da Ordem, e relembrar lindos chorinhos com a turma do Janguito, enquanto o Osmar Carta fazia seu violino chorar e antecipava a Páscoa pra piazada, distribuindo com charme e generosidade dezenas de bombons e chocolates.
Outra atração bem curitibana era o Passeio Público. O Bar do Pasquale fervia com seus habituais cervejeiros, enquanto rangentes pedalins desafiavam os mancebos a impressionar suas donzelas com vigorosas pedaladas, num romântico passeio pelas águas do Belém, repletas de coloridas carpas e baixas pontes - que por pouco não degolavam os ocupantes das embarcações.
Em 1982, minha família e eu morávamos ao lado do mato do Capanema, e de uma hora pra outra passamos a residir no Jardim Botânico. Que mudança extraordinária, lembro como se fosse hoje o impulso sofrido na região, os vizinhos se unindo pra iniciar um Lions Clube no salão paroquial da igreja, e montando seus times de peladeiros pra confraternizarem nos fins de semana no campo de areia recém-executado, enquanto outros moradores preferiam duelar nas quadras de tênis da área interna do Velódromo.
À semelhança do que ocorreu com a bossa nova, onde cada semana aparecia uma nova e inspirada canção do Jobim, em Curitiba inauguravam um parque atrás do outro, tombavam um bosque, executavam uma nova estação-tubo, um belíssimo mural do Poty, ou apresentavam uma inovação tecnológica. As placas de comunicação visual se multiplicavam, e suas setas indicavam além de rotas, distâncias, locais e bairros, a profundidade da mudança em curso, o bom gosto e adequabilidade das obras implantadas, concebidas por tão genial safra de engenheiros e arquitetos, que vieram fomentar, impulsionar e consolidar nossos anseios de transformação. Fomos a bendita geração que expulsou o acanhamento causado pelo clima frio e chuvoso, que disse adeus à timidez herdada dos imigrantes europeus, e que propiciou o surgimento de uma cidade culta, confiante e capaz.
Curitiba você é assim, e sejamos agradecidos a Deus e a todos que colaboraram para essa fantástica mudança. Claro que juntamente com ela, coisas desagradáveis e até mesmo nefastas ocorreram, principalmente em razão da vinda de tanta gente carente atrás de uma oportunidade, e com isso ampliando as favelas, diminuindo a segurança dos lares e detonando o charme do centro da cidade.
Atualmente, atravessamos uma era de justificado medo e de pobreza excessiva. Tenho visto com tristeza muitos carrinheiros ‘estacionados’ no calçadão da XV, mais para pedir do que propriamente trabalhar; e também muitos prejudicando o trânsito nas ruas centrais - coisas que não engulo. Ambulantes estacionados com artigos, roupas e frutas no coração da cidade, atrapalhando a circulação das pessoas, enfeando a cidade, e prejudicando os comerciantes legalmente estabelecidos - coisas que não digiro bem.
Não critico as pessoas que para cá vieram e aqui lutam para sobreviver - qualquer um de nós, fosse de fora e estivesse em situação precária, talvez fizesse a mesma coisa. Mas algo precisa ser feito com urgência para interromper esse processo danoso, e para aproveitar essa força de trabalho em atividades que não prejudiquem o bom andamento da cidade, nem acabem com a sua beleza. Antes que percamos a sorriso, a mobilidade, o orgulho de ser curitibano, e os turistas.
(Marco Esmanhotto)
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 02/12/2020
Reeditado em 02/12/2020
Código do texto: T7125660
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.