Onde é o longe, Charles?
Minha paciência anda curta. Que me perdoem os puristas da língua, mas minha paciência anda impaciente. Impacientou-se. Está como a louca da casa: querendo quebrar tudo. Até a si mesma. Assim, antes que eu quebrasse o televisor, o desliguei. Deixei os repórteres do JN falando para quem quisesse ouvi-los. Deve existir gente paciente por aí.Transformada na simpática palavra audiência. Trinta minutos foram o máximo que suportei. Chega de americanos em festa, condados apurando votos, a Casa Branca às moscas, bravatas e falácias trumpistas, fake news e mais apuração de votos. E, para coroar, leitura de tuitadas de um certo mito que arranchou no planalto.
Com a “caixa de fazer doidos desligada” – era assim que nossas vovós se referiam à televisão, lembram? – fui tomar a fresca. Tipo um personagem de Eça de Queiroz a sentir a brisa das serras em Sintra. Mas, sem serra e sem Sintra, fui à varanda mesmo. E também porque ainda estou em isolamento. Ou, pelo menos, tentando mantê-lo nessa urbe insana.
Olhar para o breu da noite faz pensar. Isso pode ser inquietante. Quase sempre é. Lembrei de Charles Bukowiski (1920-1994). De uma frase sua que copiei, há muito tempo, para minha caderneta. O velho Buk disse: “As pessoas me esvaziam. Então, eu preciso ficar longe para me encher.” Concordo inteiramente. Comigo também acontece isso. As pessoas me esvaziam. É tanto papo furado, tanta bobagem, palavras rocambolescas e falsas, muitas futilidades...chego a perder o ar.
As pessoas me esvaziam também, caro Charles. Às vezes penso que vou levitar de tão vazio que fico. Tipo bexiga furada em fim de festa. Murchinho, murchinho como saco de Papai Noel depois do Natal. As pessoas me esvaziam, sim. Ao longo da semana sugam-me as forças. Ah, caro Buk, quem dera poder ficar longe para me encher. Dar um tempo, me afastar, “sartar de banda”, cair no capinado para me encher. Mas com a pequenez da vida moderna, as burocracias diárias e a vida pra tocar... fica difícil me afastar.
Como dar um tempo para as pessoas, se não há lugar para ir. Crusoé tinha a ilha inabitada. O Pequeno Príncipe, um asteroide só para si. São Jorge tem a lua. Mas eu, velho camarada, estou sem tais recursos fantásticos. Como ficar longe... aliás, onde é o longe, Charles? Me disseram que você enchia a cara, entornava todas. Era sua forma de se encher. Literalmente. Eu, que vivo sem apreço ao álcool, vou seguindo. Esvaziado. Como um pacote de biscoito depois do recreio escolar. Vazio, oco, murchinho da silva. Sem um mapa ou um naco do pó de pirlimpimpim para me levar para o longe.
Aliás, onde é o longe, Charles?
*crônica publicada originalmente em 08/11/2020 no https://raphaelcerqueirasilvaescritor.blogspot.com/