Entre o Leme e a lua
Uma primeira estrela brilhou no Leme enquanto eu passava calmamente pelo calçadão. Sempre morei longe da praia, mas a despeito disso, a caminhada pela orla sempre foi o meu passeio preferido e mais revigorante, não importando a condução, quase sempre cheia, encarada principalmente no momento do retorno para casa.
Uma estrela brilhou e eu pensava em tudo. Sentei-me como de costume em um dos bancos cobertos de areia, vento e vestígios desconhecidos. O cheiro do mar me trazia uma sensação de paz, que eu saboreava como fruto doce e raro de entreestação. Nesse momentos, raramente eu não chorava. Era assim que uniam-se o sal do corpo, da dor ou do cansaço, e o sal azul, desconfiado e murmurante da imensidão fora do corpo. Eu comtemplava a imensidão e a mim mesmo.
Contrariando as vezes anteriores, nessa ocasião eu não havia chorado. Pensava na organização da semana repleta de compromissos, encontros, e-mails, contas para pagar e tudo mais que divide espaço com a calmaria revolta proporcionada por um passeio à beira mar. Naquele momento eu me preparava para voltar pra casa. Eram apenas alguns metros dali até o ponto do ônibus para a Central do Brasil. O relógio mal marcava as 19h.
Despedi-me do mar com um olhar atravessado, como se tentasse guardar na retina até mesmo o que ele não mostrava na superfície. Estava quente. A espuma era branca e as ondas assoviavam no escuro, formando um coro juntamente com os ventos, as angústias e as lembranças soltas. Era a melodia estridente e afinada da felicidade.
Já nos primeiros passos em direção ao ponto de ônibus senti que não caminhava sozinho. Olhei para trás e não percebi a princípio nada de suspeito. Segui caminhando pelo calçadão ainda repleto de banhistas e pessoas que aproveitavam a companhia do mar até o último minuto. Andei mais depressa para livrar-me da impressão, mas um ruído claro e alto me fez olhar novamente para trás, dessa vez sem tempo de me desvencilhar daquilo que me perseguia tão de perto.
Um homem baixo, branco e de barba mal feita pôs a mão no meu ombro. Segurava com a outra mão uma velha bicicleta vermelha. Anunciou o assalto já buscando o que eu pudesse ter de valor nas mãos ou em local aparente. Meu primeiro gesto foi apressar ainda mais o passo e seguir ignorando a investida, mas o indivíduo aproximou o rosto do meu e eu pude sentir ao mesmo tempo o forte cheiro de bebida alcóolica e a lâmina da pequena faca que pressionava meu quadril.
Dei um passo para trás e girei o corpo para mostrar num gesto que não tinha nada, e então o indivíduo me empurrou em direção a rua, no instante em que um carro passava em alta velocidade. Só lembro de ter sido arremessado a alguns metros dali. Moradores do local chamaram uma ambulância que me conduziu ao hospital mais próximo, e somente aí recuperei a consciência, já enquanto recebia os primeiros atendimentos.
Fiquei em observação durante toda a noite. Na manhã seguinte, consegui sem muita ajuda chegar à Central do Brasil. O gesso ainda fresco e claro, cobria o meu pé direito. Branco como a areia e a paz que deixei no calçadão do Leme na noite anterior, bem de frente para a praia. Entrei no trem, o que exigia menos esforço do que entrar na minha conhecida linha de ônibus. Ao me sentar em um dos lugares disponíveis no segundo vagão, percebi que alguém havia deixado o jornal do dia, ainda quente, no banco do trem. Passavam das 9h da manhã.
Manuseei o jornal cuja primeira seção trazia o horóscopo do dia. Apesar de dar pouca importância a essas tentativas generalizantes de alguma previsão sobre o imprevisível, me pus a ler. Eu sou prova do imprevisível. Naquele momento estava voltando de um passeio merecido e tranquilo, com gesso no pé, no lugar da areia clara e macia do Leme, com uma costela trincada e muitos hematomas pelo corpo. Dormir no hospital absolutamente não estava nos meus planos. Minha semana não começaria da forma esperada. O destino tem o que a dizer sobre isso?
Porém, um leitor é sempre e naturalmente dotado de curiosidade. Olhei cuidadosamente as previsões que se apresentavam: Sagitário: “Haverá a oportunidade de bons negócios. Dia favorável para ganho de boas quantias em dinheiro. Aproveite a companhia de novos e antigos amigos. Muita harmonia presente nas relações pessoais. Saúde: totalmente em ordem. Cor: Branco. Sobre o amor: Aproveite as novas aproximações. Dia produtivo, agitado e favorável para novos relacionamentos.”
Fechei o jornal devolvendo-o ao lugar em que o encontrei. Fechei os olhos e sorri. Meu corpo todo doía. Sem celular e com os poucos documentos que carregava na carteira, levei uma mão ao rosto, a outra ao bolso e chorei. A lágrima devida da noite passada, agora paga enquanto o trem seguia emitindo seu monótono som de lamento. Enxuguei as lágrimas sem o merecido sal do Leme e sussurrei: A culpa é minha. Eu não sei gritar.