Intermitências


Dia desses, numa prosa boa com uma garota – atendente de uma barraca da praia –, fiquei curiosa com os seus relatos juvenis. Entre uma conversa e outra, ela tocou no assunto de amizades e, com pesar, relacionou os poucos amigos que tivera até então, nos seus dezessete anos de vida. Contou que, enquanto pequena, os pais viviam se mudando de casa e de bairro, o que dificultava manter amizades. Depois, veio a separação deles, e sua criação passou a ser responsabilidade de uma tia. Muito cedo começou a trabalhar, e os amigos foram se perdendo ao longo da vida.
Uma menina! Mas já se prepara, segundo ela, para o casamento – embora o sonho de continuar os estudos e de se formar em Psicologia continuem em foco também.
Na volta do passeio, eu me vi pensando nessa conversa e percebi o quanto nossa vida é intermitente. Por mais que se procure dar uma continuidade aos acontecimentos, ainda assim, muitas vezes, as rupturas acontecem. São intrigantes e, ao mesmo tempo, podem ser imperceptíveis aos olhos comuns.
Ainda nesse raciocínio, eu me lembrei de que também passei por situações parecidas: as mudanças frequentes de habitação – pelo mesmo motivo dela – geravam uma bagunça danada na minha cabeça. Como se não bastasse – ou, quem sabe, me habituei ao processo –, depois de casada também resolvi fazer uma mudança radical na minha vida. Deixei minha cidade natal, meus familiares, e vim morar aqui no Nordeste. Mas essa história eu já contei.
Voltando às intermitências da vida, ou melhor, da minha vida.
Num passeio pela história, liguei fatos aos meus passos. Por volta do ano de 1910, as áreas desocupadas da Região Sul, o desenvolvimento nas plantações de café no interior de São Paulo e os próprios incentivos governamentais à imigração estimularam a vinda, em massa, dos europeus para o Brasil, os quais, em busca de condições melhores de vida, se aventuraram numa nova empreitada.
Como resquício desse processo, nessa leva, estavam os meus avós paternos Dolores e Antônio, espanhóis, e minha avó materna Maria, portuguesa.
Do pouco que sei deles, minha avó Dolores aportou lá pelo sul do país. Só depois veio para o interior de São Paulo.
Meu avô Antônio já estava lá pelo interior paulista, quando minha avó chegou, de morada.
Minha avó Maria, desta sei menos ainda. Apenas que se estabeleceu nesse mesmo interior, onde conheceu meu avô Joaquim – goiano de nascença e tropeiro por opção, até aquela data.
Tanto meus avós maternos como paternos trabalhavam como colonos – trabalhadores rurais nas lavouras de café de grandes proprietários.
Pouco se sabe das suas histórias de vida. A começar pela mudança natural, quando da saída do país de origem. Sem condições financeiras e diante dos precários meios de comunicação, tudo foi empecilho e favoreceu o rompimento na descendência familiar. Até os seus nomes foram substituídos, ao chegarem por aqui.
Quando ainda pequena, meus pais, também de espirito itinerantes, resolveram tentar a vida na capital paulista, o que resultou num outro isolamento familiar, pois, as nossas raízes permaneceram no interior. Quando lá retornei, já tinha completos os meus dezoito anos. Minha avó Dolores havia falecido. Totalmente alheia a tudo e a todos, fui descobrindo tios, primos; enfim, parentes queridos, que nunca os tinha visto. Meu avô Antônio viveu até bem pertinho dos cem anos; mas, quando partiu, estávamos distantes.
Assim sendo, convivi mais com a família da minha mãe, principalmente a minha avó Maria; mas, mesmo assim, nunca tive a curiosidade de saber acerca de sua vida, de sua vinda de Portugal para o Brasil, sofrimentos e vitórias. Ela era muito introspectiva. Não dava brecha de conversa com ninguém. Acho que minha missão nessa vida é tirar o atraso dela, nesse quesito. (risos)
Adoro ouvir e contar causos. Acredito que somos protagonistas da história que vamos desenhando no nosso fazer diário.
Embora tenha sido sempre uma “rascunhadora” de pensamentos, só a partir de certo tempo para cá resolvi registrá-los, e de forma intimista. Pretendo, através da minha modesta prosa, deixar as marcas dos meus tempos. Quem sabe, um dia, minhas descendências futuras tenham a curiosidade de saber um pouco da história familiar.
Gosto de ouvir meus filhos comentando fatos da infância, onde os amigos e as brincadeiras são comuns a um universo bem maior do que aquele que eu tive.
Adoro quando se lembram dos mimos feitos pelos avós e falam na saudade e da falta que fazem. Diferente de mim, que só tenho retalhos das lembranças.
Por isso que, na medida do possível, tenho deixado meus rastros. Minha escrita é, de alguma forma, um ir e vir, fazer e desfazer – uma intermitência – nos relatos, nos detalhes, nas vidas e situações ali registradas.
Se esse tipo de escrita representa uma forma imatura de expressão, já sei que serei eternamente verde, pois não abrirei mão das minhas histórias.
Vanda Jacinto
Enviado por Vanda Jacinto em 22/11/2020
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