Lembranças e Sonhos
Noite úmida de primavera, apesar de chuvosa, fazia um calor. Abri a janela para que o vento entrasse e trouxesse o frescor que mais precisava naquela hora, mas não trouxe apenas isso. Observar janelas é saber que irá refletir sobre algo, fora inevitável. Estava eu ali, frente a janela que me levou de volta para a mesa, com café fresco, cadernos espalhados, planilha de projeto e notebook em punho, tecendo o projeto derradeiro. Poucos são os flashs que me recordo de antes dessa cena, alguns sem tanta importância, ou importantes o suficiente para impulsionar algo que nem os Deuses sabiam que poderiam acontecer. O vento entra novamente, trazendo um beijo tão sutil quanto o que minha memória insiste em duvidar que aconteceu...
Já era noite quando, no auge do desenvolvimento do projeto, Gabriela, que nos acompanhava descontraidamente, resolvera ir para casa. Fora uma tarde cheia, apesar do compromisso. Chegamos na casa de Clarice, que representaria o projeto na empresa em poucos dias, por volta de 14h, tomamos café e começamos um papo descontraído. Thaís nos acompanhava e ali nada fazia tanto sentido quanto nos encontrarmos! Era quase diário nossos bate-papos descontraídos e até apimentados, dependendo do dia. Thaís e eu trocávamos uns beijos nessa altura, enquanto Gabriela e Clarice se entrelaçavam em beijos e abraços envoltos de malícia. Mas Thaís não ficou muito, forçando as duas beldades a se desgrudarem e nos dedicarmos, o mínimo que fosse ao famigerado projeto. Era uma importante apresentação e Clarice, lindamente dedicada estava bastante empolgada com tudo que envolvia o projeto.
Movidos a café, ela foi fazer mais um pouco, enquanto me recostei preguiçosamente para traz na cadeira. De olhos fechados e pernas bem alongadas, com a cabeça sabe os Deuses aonde, senti um peso sobre mim e quando abri os olhos, Gabriela estava bem diante de mim, puxando-me para um beijo, sentada no meu colo e acariciando meu cavanhaque, de maneira deliciosamente surpreendente. Da cozinha, Clarice viu quando ela saía rapidamente de cima de mim e, sem esboçar nenhuma reação conflituosa, quase parecendo que não tinha visto. Até hoje tenho minhas dúvidas quanto a isso. Retornamos.
Acendi um cigarro, fitando a janela e rememorando todas as sensações que aquele dia me trouxe. Thaís, Gabriela... Mulheres decididas, seguras do que queriam e não faziam questão de dissimular e eu, um homem incomum, que apesar de entende-las, não tinha mesma postura. Ali todos sabiam, inclusive a própria, de minha admiração perdidamente apaixonada por Clarice, mesmo depois de entender que meu lugar estava reservado no roll da amizade. Essa situação me era tranquila, apesar do brilho dos meus olhos falarem por si só. Peguei um café para acompanhar minhas memórias e terminar o cigarro. Aqueles lindos olhos negros de Clarice eram minha perdição. Um mar de ternura, de firmeza e sutileza cintilavam deles todas as vezes em que eu mergulhava fundo, era entorpecedor.
Enfim Gabriela resolvera ir embora e Clarice a levou no portão. Concentrado, redigia o projeto passo a passo, para não haver erro nenhum. Como disse, este projeto era extremamente importante, portanto, a dedicação a ele era inevitável. Ouvi a porta abrindo e os passos na direção da sala. Revisando a planilha, fui surpreendido com um toque sutil nos ombros, resolvi olhar para o lado. Minha maior surpresa fora aquela boca maravilhosa tocando a minha, lábios deliciosamente úmidos, num momento que minha mente insiste em lembrar, mas sem saber se fora real ou mera criação da imaginação. Clarice me dera um beijo e quando pensei em questionar o que acontecia, ela simplesmente diz: “Queria entender o que essas mulheres sentem com você...”. Ameacei balbuciar alguma coisa, mas fui calado por Clarice, que dessa vez me calara com o seu polegar acariciando meus lábios e dizendo pra continuarmos focados no projeto. Sim, eu acatei o que ela falou e, se foi real, essa mulher decidida me faz lembrar esse momento de uma maneira inesquecível. Se for sonho, é um dos mais marcantes que eu carrego.
Seja como for, todas as vezes que me recordo, posso sentir aquele toque nos lábios e todo clima que nos envolveram ali naquele momento. Acabei meu cigarro, mas não consegui parar de pensar na Clarice, por tudo que isso ainda balança aqui dentro. E sabe Deus até quando ficará...