Indiferentemente

Lídia tinha me dito que só havia se apaixonado uma vez na vida, mas que fora um completo engano. Algo que não iria mais se repetir. E depois disso não quis mais falar sobre o assunto.

Fiquei com a cabeça encostada na janela do carro enquanto ela acelerava e passava as marchas completamente fora de tempo. O carro gemia em sofrimento enquanto ela pisava no pedal. Mas o carro não era o único que sofria ali.

Paramos num posto de gasolina e ela estacionou em frente a uma loja de conveniência. Lídia desceu do carro sem dizer nada. Eu desci também e me encostei no porta malas pra tomar um ar.

Uma frentista passou perto de mim e sorriu. Eu sorri de volta e ela se aproximou.

- Boa noite. – Ela disse.

- Boa noite.

- O senhor teria como trocar cem reais?

Abri a carteira e tirei duas notas de cinquenta. Ela me entregou uma nota de cem e sussurrou.

- Muito obrigada. O senhor salvou a minha vida.

- Não foi nada.

Ela se afastou, rebolando um pouco, com sua roupa extremamente demonstrativa e que forçava sensualidade.

Era um pedaço de machismo que os postos de gasolina insistiam em manter, com a desculpa de aumentar de alguma forma a rentabilidade do negócio.

Pensei nela, e em todas as vidas desperdiçadas em subempregos que só serviam pra enriquecer os bolsos de quem nunca deu um dia de trabalho na vida. Enfermeiros plantonistas, motoristas de ônibus, caminhoneiros, garçons, prostitutas... Vendedores de pipoca.

Pensei nos que se sentam sobre seus diplomas, como se fossem títulos de nobreza, se achando melhores que os outros e olham pra tudo isso de cima.

Pensei nos policiais, nos bandidos e nas balas. Nos pretos que morrem todo dia só por serem pretos. E nas suas mortes que já não comovem quando passam na TV. Pensei nas armas, e no desprezo que era o combustível pra toda essa guerra. Pensei nos bolsos cheios de dinheiro e nos corações vazios de quem tinha lavado as mãos de todo o sangue. Me senti mal no meio do pensamento e desejei que a vida fosse diferente. E enfim, me senti um idiota por estar pensando nisso.

Então Lídia saiu da conveniência carregando uma lata de energético e duas carteiras de cigarro nas mãos.

Entrou no carro sem dizer nada e eu voltei para o meu lugar.

- Você não perde a oportunidade não é? – Ela falou irritada.

- De que? Não estou entendendo.

- Eu vi você de conversinha com a frentista.

- Ela só queria trocar uma nota de cem.

Lídia fechou a cara, sacou um cigarro do maço e acendeu, como se não estivéssemos num posto de gasolina.

Talvez ela quisesse que tudo fosse pelos ares, enfim. Mas eu não disse nada.

Lídia deu dois tragos e deu ré no carro e voltamos para a rua.

Uma ambulância passou acelerada por nós, quase arrancando um retrovisor. Dentro dela, alguém estava morrendo. Eu tive quase certeza. Mas a noite e a vida iam seguir... Indiferentes àquela morte e a todas as outras tragédias pessoais. E mesmo que Lídia nunca mais fosse amar ninguém,

indiferentemente a isso, eu seguiria amando,

sozinho.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 20/11/2020
Código do texto: T7116229
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