“Crônica do Casal no Parque versus o amor líquido” (Para Vinícius de Moraes e Zygmunt Bauman)
“Crônica do Casal no Parque versus o amor líquido” (Para Vinícius de Moraes e Zygmunt Bauman)
Estava eu em meu passeio diário em um parque em local que não vou identificar – informações pessoais do cronista não interessam ao leitor, já diziam os antigos mestres -, quando, subitamente, em meio a uma destas curvas do parque, apinhada de árvores ladeando a pista de “corrida” ou “caminhada”, eis que exsurge em vislumbre um magnífico casal em sua idílica Terceira Idade, passeando de mãos dadas e me cumprimentando, da forma respeitosa com que se faz a um estranho que se cruza em um lugar público: um gesto sutil de meneio de cabeça, reverencial - encontro este que se repetiu por dias seguidos, em outros locais da imensa pista, pois pude vê-los, hora caminhando de mãos dadas, ou parados observando um passarinho, ou vislumbrando um fruto de uma árvore, ou apenas caminhando em silêncio, lado a lado, a situação mais comum e a mais marcante.
É certo que a atividade física faz bem ao corpo e à alma, e os romanos, dominadores do mundo, já defendiam pontuais que “mens sana in corpore sano” – “uma mente sã em um corpo sadio”. De fato, os mais recentes estudos científicos comprovam que correr faz bem ao cérebro, pois aumenta a produção de substâncias que geram bem-estar e melhor funcionamento mental, tais como a serotonina, a dopamina e a endorfina.
No entanto, também é certo que a atividade física, durante sua realização, diminui a oxigenação nos momentos de fôlego decaindo, e, nestas horas, o cérebro parece que começa a soltar suas cordas e vira um cérebro com asas. Uma espécie de “coração-Ícaro”, alado e em movimento – para usar uma figuração que me é literalmente familiar. Um "comboio de cordas", como epitomava Fernando Pessoa.
E enquanto prosseguia no meu caminho de desafios físicos, com respiração resfolegante e passo já meio trôpego de fadiga, o cérebro começou a lembrar de um dos mais belos textos de Vinícius de Moraes, “o amor por entre o verde”, no qual o querido poetinha descreve com sua sensibilidade inalcançável a beleza de um amor juvenil que começa a surgir nas tardes em que via sempre da janela de seu apartamento o “casalzinho no parque” – um “casalzinho de brotos”, como os denominou coloquialmente, contando sua ternura em ver como repousavam “os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos”, uma das metáforas mais singelas e belas de nossa literatura romântica.
E em sua corajosa e profética voz, Vinícius de Moraes se perguntava, como que duvidando da longevidade daquele amor roxo que enxergava, se o “casalzinho de brotos” continuaria a se amar pelo resto de suas vidas então jovens e iniciais: ”Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com os cabelos presos?” (Vinícius de Moraes – “o amor por entre o verde”).
Bom, Vinícius de Moraes sempre tem uma certa razão em tudo que escreve. De fato, quantos casais de jovens namorados findam por se separar e ir viver com outras pessoas ou sozinhos? O amor às vezes é efêmero e outras vezes é algo intenso, enquanto tiver o que queimar – e o que seria este tal “combustível”?
Talvez nesse momento eu devesse seguir o conselho de Carlos Drummond de Andrade, outro ícone no qual costumo procurar refúgio em minhas meditações:
" Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe o que será"
(Drummond, Carlos. "Não se mate").
No entanto, vejo o velho casal junto e não resisto a ficar imaginando sua história singular – e como é inevitável constatar que, ao contrário do futuro incerto do casalzinho de jovens do poetinha, seu presente de presença constante em dueto de caminhada é a certeza de um passado que de alguma forma “deu certo”. Ou, ao menos, parece que "deu certo".
Teriam sido os primeiros namorados um do outro? Teriam se conhecido na infância, ou na juventude, ou na idade adulta, ou na própria terceira idade? Se estão casados há tempos, como conseguiram sobreviver às voltas que o amor dá, como se desviaram de outros amores que exsurgiram ou ressurgiram em suas respectivas vidas? Como suplantaram as dores, as frustrações, os erros, e até os cansaços normais de toda relação duradoura? Como aprenderam a aceitar e a conviver com os defeitos de seus amados? Teriam tido vidas “duplas”? Teriam sido o segundo ou o terceiro amor na vida de cada um? Teriam um relacionamento “aberto”? Seriam apenas dois sobreviventes de uma tempestade que se encostaram um no outro e prosseguiram, simplesmente prosseguiram? Ou, como dois pombinhos, sempre se amaram intensa e imensamente? Qual seria sua história, e seu segredo de longevidade?
Um casal antigo, destes amores que nos encantam ver, parece ser uma exceção no parque... È como se fossem uma trincheira de resistência contra o desembarque dos Aliados na Normandia - e é a humanidade que parece estar desembarcando do amor real.
A verdade é que, hoje em dia, nestes tempos de vidas frenéticas, redes sociais, exposições imagéticas e de prevalência das aparências, parece ser cada vez mais difícil encontrar e manter um amor verdadeiro, destes que fazem a gente palpitar o coração, tremer nas bases e apaziguar a alma.
Zygmunt Bauman, em sua obra “amor líquido”, afirma que o amor e a morte são eventos absolutamente incompreensíveis e incontroláveis, e ninguém pode prever quando vão chegar, nem se pode aprender como amar, da mesma forma que não se pode aprender a “como morrer”: “chegado o momento, o amor e a morte atacarão – mas não se tem a mínima idéia de quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido” (BAUMAN, Zygmunt. “Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos”. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Editora Zahar. P. 10).
Na mesma toada, Miguel de Cervantes usa uma lição de sua magnífica personagem Dom Quixote de La Mancha ao seu fiel escudeiro Sancho para ensinar que o amor - além de ser imprevisível - pode acontecer para qualquer um, seja quem for: “Adverte, Sancho – disse Dom Quixote –, que o amor não mira cumprimentos nem guarda termos de razão em seus discursos, e tem a mesma condição da morte: que assim acomete os grandes palácios dos reis como as humildes cabanas dos pastores, e quanto toma posse de uma alma, o primeiro que faz é tirar o medo e a vergonha.” (Parte 2, Capítulo 58).
Mais claro ainda, meu pai romancista um dia escreveu esta pequena pérola: "- Qual a sua conceituação do amor? - A única coisa que não se vende, dá-se, e a pessoa mais pobre do mundo pode obtê-lo de graça" (Maurício Braz Peixoto da Silva: "Coração de Anjo"- ed. Jornal 'a fortaleza'; Fortaleza-CE, 1976, 1ª edição, pg. 127).
Obviamente, nem sempre o amor virá de uma vez, certo e irresoluto, pairando acima das dúvidas e das incertezas, como reconhece Milan Kundera: “no fundo, não se saber o que se deve querer é normal: nunca se pode saber o que se deve querer porque só se tem uma vida que não pode ser comparada com vidas anteriores nem retificada em vidas posteriores”. Ou seja, a insustentável leveza do ser também reside na constatação de que “tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado” (Kundera, Milan. “KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999p. 4).
De certa forma, Vinícius de Moraes também fala destas nebulosidades da vida quando afirma no mesmo texto "amor por entre o verde" que a existência humana na Terra é um "estranho baile de desencontros, em que freqüentemente aquela que devia ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram".
O amor é imprevisível, portanto, e cada amor que se vive é único e irremediavelmente irrepetível - e um dos grandes desafios é conseguir o reconhecer em meio à multidão de rostos aparentemene iguais...
No entanto, nos dias de hoje, os amores são tão fartos e tão disponíveis que nem demoram tempo suficiente para se tornarem especiais, como Bauman afirma implicitamente ao constatar que “a vida consumista” dos dias contemporâneos “favorece a leveza e a velocidade”, bem como a “variedade e a novidade” que aquelas “promovem e facilitam”.
Bauman reconhece, metódico, que, em um golpe publicitário inédito na história, a expressão vocabular “sexo seguro” foi reduzida ao puro e simples “uso de um preservativo”. Diante disso, me pergunto, ensimesmado: e o “amor seguro”? O que seria? Também é possível o evitar com as mesmas armaduras e máscaras?
Com efeito, Bauman, ainda, embora reconheça que amar é algo tão incontrolável quanto a morte, afirma peremptório que, na modernidade, até por causa dos relacionamentos “em rede”, é mais fácil criar e desfazer laços afetivos, e as expectativas criadas pelos novos jogos de sensualidade estão fadadas a uma constante “irrealização”, e talvez por isso as pessoas vejam o amor como se fossem “consumidoras”, e, em consequência, ocorre o que se pode esperar de um fato que se autolimita a um “episódio”: “como qualquer ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo semelhante, a instantânea obsolescência do objeto consumido” (Ob. Cit. P. 31), como se o amor fosse um novo tipo de mercadoria que seria facilmente substituída por outro “objeto” na enorme prateleira disponível neste mundo líquido e sem raízes.
Ou seja, poderíamos indagar: o “outro” seria apenas uma chance e um instrumento para satisfazer a si próprio, algo que consome e se usa enquanto traz o prazer imediato e célere? Ou amar, ao contrário, significaria aprender a servir e ser servido, em fluxo constante de um estoque sentimental que precisa ser frequentemente renovado?
Talvez, seja correto pensar que amar é como o vento no litoral: tem horas em que a brisa soa mais forte, e tem horas que ufana suave, apenas acariciando os cabelos, sutilmente.
Ali, no meio do oceano da vida, estamos em nossa pequena embarcação, com nosso companheiro escolhido, que nos ajuda - ou deveria ajudar - a singrar as ondas, vivenciando a mesma fragilidade e o mesmo milagre de uma pequena jangada que desafia o mundo que é tão mais vasto e ameaçador... Esqueçamos os iates, os transatlânticos, os submarinos: o amor é uma miraculosa jangada de Caymmi, pequena e frágil, desafiando os oceanos desconhecidos, onda após onda, dia após dia!
È, vivemos tempos inclementes com o amor verdadeiro, este incalculável e desavisado amor que parece não mais existir porque demora tempo demais para aparecer e se tornar algo real e tangível, o amor verdadeiro não dá para ver com os olhos e nem sentir com os sentidos da pura e simples sensualidade, embora também contenha estas vivências tão boas.
- Talvez fosse o caso de aconselhar a se “amar menos” - para se poder “amar mais” e com a beleza que os poetas prometem em suas ilusões literárias.
Lembro uma última vez de Bauman e sua cantilinária, dizendo que há no casamento um certo grau de refúgio contra "as incertezas" dos tempos de hoje - afinal, o segredo do casal do parque talvez apenas resida ali, na segurança subjetiva - ou por vezes cômoda - de singrar os mares com alguém ao lado, o risco de viver é o mesmo, mas há um conforto de saber que alguém está ali tão perto e vai - ou deveria - ajudar a enfeixar a vela e conduzir ao horizonte inevitável do destino... Para alguns, talvez o amor venha a se cingir a esta frágil e resoluta certeza em meio às incertezas. Pode ser pouco para uns, mas pode ser muito ou apenas assaz, para outros.
Termino minha corrida e vou olhar a Lua Cheia, brilhando imensa no céu, gratuita, insubstituível, polifásica, não-descartável, permanente, sólida como nunca nestes tempos de amores líquidos, intensos, belos, expressivos e envelhecidos de tão céleres.
E relembro o poetinha Vinícius de Moraes finalizando sua crônica sobre o casalzinho de "brotos" no parque com um trecho que sempre me pareceu revelar muito mais a singular utopia poética viniciana e sua busca pessoal - que nunca se realizou - do que um dado da realidade propriamente dita, afinal, o poetinha viveu muitos e muitos amores especiais, com a infinitude de sua incompletude...
(“E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas” - Vinícius de Moraes - amor por entre o verde).
É certo que o amor virá um dia, assim como a morte é certa (Bauman), da mesma forma como a dúvida é normal para qualquer pessoa (Kundera e Drummond), e do mesmo jeito que se afirma não escolher o amor as suas “vítimas”, e nem momento, e nem circunstâncias e pompas (Cervantes).
Mas, que venha sempre o amor na vida da gente como a imaginária amada do poetinha, de repente, sabe-se lá de onde e para sempre, como a canção cósmica das estrelas – um amor sempre velho e jovial, como um coração de Vinícius que não se cansa de desafiar o mistério da imensidão na sua pequena jangada, singrando as procelas da vida, na vivência da ousadia de amar. O amor infinito, denso, intenso, tenso. Feliz.
Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto
Brasília, 14 de junho de 2017.