BOLINHAS DE BÚRICO

No início da década de 1960, não havia um guri sequer em Curitiba que não andasse com os bolsos repletos de bolinhas de gude. Isso mesmo, aquelas feitas de vidro colorido e que aqui na terra dos pinheirais ficaram conhecidas como bolinhas de ‘búrico’. Isso por causa do jogo denominado búrico, no qual era ganhador quem introduzisse com o menor número de jogadas a bolinha dentro de um buraco escavado no terreno – como se tratasse de um jogo de golfe sem tacos e de apenas um buraco.
A gurizada também jogava na ‘roda’. Com um toco de madeira, o mais habilidoso de todos riscava o solo batido, esmerando-se pra desenhar um círculo perfeito. Em seguida, cada piá ia jogando a sua ‘peta’ (bolinha preferida pra jogar) dentro do círculo, tentando acertar uma das bolinhas já lançadas, e caso acertasse, tinha direito a mais duas jogadas pra tentar expulsá-la pra fora da roda; e se expulsasse, abiscoitava uma bolinha do adversário. De vez em quando, apareciam uns marmanjões munidos de umas bolinhas enormes chamadas ‘canhões’, e por mais força que a gente fizesse não conseguia enxotá-las da roda. Eles ficavam só rindo da cara da gente, e essa é a razão principal de eu sempre achar que deveriam ser proibidos esses tais de canhões..!
Mas o bom mesmo era jogar no ‘caso’ – pelo menos eu gostava muito. De dois a cinco competidores ‘casavam’ suas bolinhas em linha reta, espaçadas uns dois metros uma da outra, e quem conseguisse acertar uma delas prosseguia jogando até errar, ganhando todas as bolinhas que porventura acertasse no percurso. Esse jogo possuía um vocabulário todo próprio, que fazia valer privilégios para quem fosse ligeiro e pronunciasse antes dos demais jogadores algumas palavrinhas mágicas. Por exemplo, se a bolinha ‘jogadeira’ da gente parasse no fundo de um buraco ou atrás de um obstáculo, precisávamos imediatamente falar:_”Altos morrinhos!”, porque se alguém percebesse nossa situação caótica e exclamasse rapidamente:_”Sem altos morrinhos!”, então babau, tinha que jogar de lá mesmo, com pequeníssima chance de acertar a bolinha adversária. Havia outra frase de efeito que utilizavam:_”Boas a minha e morte a tua!”, que até hoje não faço a menor ideia pra que servia. Mas nem quero saber, porque já acho o máximo esse jargão, e que não venha um sabichão qualquer querer me explicar seu significado...hehehehehe. Outro detalhe importante: quando queríamos acertar com força a bolinha de alguém, era necessário impulsionar a mão na hora de jogar, mas se alguém dissesse rapidamente:_”Impulsos nada!”, então tínhamos que colar o pulso no chão e fazer um tremendo esforço pra jogar e não decepcionar a plateia presente. O antídoto dessa terrível maldição lançada era gritar antes:_”Sem impulsos nada!”, e daí podíamos impulsionar à vontade. Não é cômico demais tudo isso..???
Quanto à maneira de jogar, havia duas: na primeira delas, mais elegante e certeira, denominada ‘cê de galo’, o jogador segurava a bolinha apoiando-a nas falanges mediais dos dedos indicador e médio, e no lado oposto encostava a junta do polegar, e era com ela que impulsionava a dita cuja mencionada; na segunda, totalmente deselegante e imprecisa, conhecida popularmente por ‘cê de galinha’, o indivíduo utilizava somente dois dedos, prendendo a bolinha entre a falange medial do indicador e a unha do polegar, e era exatamente essa unha que impulsionava a bola para frente.
No que tange à regra geral vigente, carimbada e registrada em cartório pela ABUPAR – Associação dos Buriqueiros do Paraná - era terminantemente proibido sair do jogo quem estivesse ganhando, até que acabassem as bolinhas do(s) seu(s) adversário(s). Lembro certa vez que eu jogava com um conhecido bem em frente à minha casa, e faturei todas as suas bolinhas. Inconformado, ele voou até o armazém da esquina pra comprar mais três dúzias e continuar o jogo. Para mim, não seria nada complicado continuar amealhando as suas pelotas, porque ele jogava mal pra burro, só que minha mãe estava me chamando insistentemente para o almoço, mas como eu não poderia sair até rapá-lo totalmente - e isso poderia levar mais de meia hora - tentei contemporizar a situação, argumentando que precisava parar de jogar devido àquela emergência (minha mãe avisando que se eu não fosse imediatamente pra casa, apanharia do meu pai). Como ele estava excessivamente enfezado e humilhado por estar perdendo tão vergonhosamente – e por uma fatalidade do destino era um piá bem mais forte do que eu - acabei levando uns bons sopapos ali na rua mesmo, poupando meu pai de tão desagradável tarefa.
Quando entrei em casa berrando, todos estavam almoçando e aproveitaram pra torcer a faca: _”Viu no que deu? Quem não obedece é nisso que dá, daí que acontecem essas coisas..!”. Nada mais equivocado...hehehehe. Se soubessem que apanhei justamente por querer obedecer, tenho a leve desconfiança de que teriam sido mais complacentes comigo.
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 18/11/2020
Reeditado em 18/11/2020
Código do texto: T7114566
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.